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“Toda a vida como liturgia”
Boletim da AIM • 2023 - No 125
Índice
Editorial
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB, Presidente da AIM
Lectio divina
“A paz esteja convosco!”
Dom Adriano Bellini, OSB
Perspectivas
• Liturgia monástica, o grande “hoje” de Deus
Dom J.-P. Longeat, OSB
• Santa Macrina, “Toda a sua vida foi liturgia”
Irmã Véronique Dupont, OSB
• Implementação da reforma da Liturgia monástica das Horas na congregação brasileira
Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB
Reflexão
Os ritos no coração do vínculo social
M. Jean-Claude Ravet
Grandes figuras da vida monástica
Le Saux-Abhishiktananda, um sacerdócio no Espírito
P. Yann Vagneux, MEP
Arte e liturgia
Ao longo da história, “Maria guardou todas essas coisas em seu coração”
Dom Ruberval Monteiro, OSB
Notícias
• Viagem à Terra Santa, abril-maio de 2023
Dom J.-P. Longeat, OSB
• Viagem à Índia, fevereiro de 2023
Irmã Christine Conrath, OSB
Editorial
Este número do Boletim da AIM desejou ser uma reflexão sintética sobre a prática da liturgia nos mosteiros hoje: as conquistas, os questionamentos, as propostas. Não conseguimos enfrentar esse desafio, que teria exigido maior preparo e contato com vários mosteiros nos diferentes continentes para obter um quadro da situação atual.
No entanto, este número ainda trata da liturgia, de uma maneira mais geral e espiritual. Estamos felizes por contar com a contribuição de três beneditinos brasileiros, dois dos quais são professores no Instituto Pontifício de Liturgia, em Santo Anselmo.
Retomamos um estudo da Irmã Véronique Dupont, monja de Vénières e colaboradora incansável da AIM, infelizmente falecida muito rapidamente. Este artigo aborda “a vida como liturgia”, tal como uma Mãe do deserto como Santa Macrina convidou por toda a sua existência.
Também quisemos homenagear a personalidade do Padre Henri Le Saux, neste 50º aniversário de sua morte, com uma contribuição do Padre Yann Vagneux, das Missões Estrangeiras de Paris (MEP). Este estudo já foi publicado na revista “Vida Consagrada”, mas vale a pena destacá-lo.
Por fim, a Irmã Christine, secretária da AIM, apresenta aqui seu relatório de viagem à Índia, por ocasião da reunião do ISBF, seguido pela visita a vários mosteiros, e eu mesmo dou alguns ecos da minha estadia em Israel, encontrando diferentes comunidades da família beneditina na Terra Santa.
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Artigos
A paz esteja convosco! (Lc 24, 35-48)
1
Lectio divina
Dom Adriano Bellini, OSB
Abadia de São Martinho de Ligugé (França)
A paz esteja convosco!
O evangelho de São Lucas 24, 35-48:
uma chave para a liturgia
Jesus não se assemelha ao Messias que os israelitas imaginavam, ou seja, um rei, um sacerdote e um profeta que os libertaria da opressão dos mais poderosos, perdoaria os pecados e traria a salvação consigo. No entanto, o Apóstolo Pedro lembra que Jesus é o Messias que deveria vir, que cumpre plenamente a profecia de toda a Escritura. A hora chegou: precisamos abrir nossos olhos para receber a salvação. Apenas aqueles que se deixam iluminar pela luz do Cristo ressuscitado têm o coração aberto para a inteligência das Escrituras, para relê-las e redescobrir que Ele, o Salvador, nos salva pela humildade, obediência, paixão e morte. É precisamente no momento crucial e doloroso de Sua morte na cruz que Ele realiza as profecias. Como verdadeiro sacerdote, Ele oferece o sacrifício definitivo e revela o poder da realeza de um Deus de amor que não apenas salva Seu povo, mas permanece com ele para sempre.
Os discípulos de Emaús reconheceram Jesus “na fração do pão”, e agora o Senhor se apresenta pessoalmente no meio deles, mostrando-lhes os sinais da crucificação para dissipar o medo e a dúvida; eles também podem tocá-Lo e comer com Ele. O Cristo, o Vivente, assegura-nos de Sua presença real entre nós, especialmente pela Palavra e pela Eucaristia. Podemos e devemos experimentar a alegria de encontrar o Cristo diariamente, para poder comunicar com Ele e receber o perdão, a vida e as bênçãos de que precisamos.
Jesus ressuscitado dirige esta saudação aos discípulos: “A paz esteja convosco!”. A paz é o dom messiânico por excelência, é o dom da ressurreição de Cristo. Mas não é uma paz fabricada de acordo com a mentalidade do mundo. Jesus mesmo diz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não a dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize” (Jo 14, 27). A paz de Cristo é uma paz que transforma a dúvida em certeza, o egoísmo em comunhão, o medo em esperança. Este desejo de paz é profundamente litúrgico, é por meio dele que o bispo inicia toda celebração litúrgica. Não é por acaso que o lema dos beneditinos é “PAX” – paz – e que São Bento é chamado o mensageiro da paz. Geralmente, encontra-se a saudação PAX na entrada de todos os mosteiros; às vezes até uma frase, por exemplo: Sit pax intranti, redeunti gratia sancti (Paz àquele que entra; àquele que sai, leve consigo a graça do santo [Bento], como na entrada da Abadia de São Paulo fora dos Muros, em Roma). Aqueles que passeiam pelo claustro da Abadia de São Martinho têm diante de si mosaicos que lembram com insistência o dom da paz. Não é apenas um desejo de boas-vindas para aqueles que vêm ao mosteiro, mas o sinal de que a comunidade acolhe o hóspede e lhe entrega, ao entrar e sair, o que tem de mais precioso: a paz de Cristo, o dom pascal por excelência. A comunidade monástica em si é chamada a viver de acordo com esta paz, buscá-la, preservá-la e irradiá-la para o mundo: “Busca a paz e segue-a”, diz São Bento (Prólogo 17).
“A paz não é preguiça, nem falsa indiferença, [...] a paz é a atitude de uma alma unida a Deus na caridade.” (Dom Delatte)
A paz nem sempre significa a ausência de problemas ou conflitos. Pelo contrário, Jesus adverte Seus discípulos de que terão que suportar muitas tribulações. A paz que Jesus conquistou com Seu sangue significa, antes de tudo, a certeza de Sua presença, mesmo quando temos que atravessar um mar agitado de dificuldades. Jesus está vivo, caminha conosco e nos dá Sua paz e a alegria do Espírito Santo. Essa paz se realiza quando todos estão empenhados na busca de Deus e do bem comum, quando existe um desejo sincero de comunhão, caridade e doação de si. É esta paz, a paz do Cristo ressuscitado, que trocamos durante a missa.
“Fica conosco, Senhor.” Livra-nos da ignorância e abre os olhos de nossos corações para ouvir Tua palavra e obedecer a Deus. Concede-nos a graça e a alegria extraordinária de encontrar-Te no pão partido a cada celebração eucarística, e que nosso ser seja verdadeiramente transformado pela comunhão com Teu Corpo e Sangue, para que nosso testemunho de fé seja crível, nossa caridade sincera e Tua paz esteja em nós. Amém.

Liturgia monástica: O grande “hoje” de Deus
2
Perspectivas
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Liturgia monástica:
O grande “hoje” de Deus
As poucas reflexões propostas aqui pretendem ser um convite para escolher viver hoje como o dia mais importante e real que nos é dado. Hoje, como todos os dias, tudo acontece pela força e verdade dos seres e das coisas, desde que nossas vidas estejam dispostas a acolhê-los. Como se sabe, a liturgia destaca esse “hodie”, esse presente que nos faz entrar no dia sem fim de Deus.
Essa proposta é feita pensando em todos aqueles que, hoje, como todos os dias desde a criação dos seres humanos, têm sede de ser, de viver, de compreender, de compartilhar, de amar, de existir intensamente em uma humanidade que clama por sua sede e desejo, sem realmente saber quais podem ser o objeto e o modo.
Primeiro, colocaremos a questão da escuta diária: “Hoje, se ouvirdes a minha voz”; depois a do alimento diário: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, e finalmente nos voltaremos para o Dia de Deus, o dia além dos dias, o dia prometido e tão desejado.
“Hoje, se ouvirdes a minha voz, não permitais que se endureçam vossos corações” (Sl 94)
Este versículo do salmo é citado no início da Regra de São Bento:
“Levantemo-nos então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo: ‘Já é hora de nos levantarmos do sono’. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações’, (Sl 94, 8). E em outro lugar: ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas’ (Ap 2, 7). E o que ele diz? ‘Vinde, meus filhos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do Senhor’ (Sl 33, 12). ‘Correi enquanto tendes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos apanhem’ (Jo 12, 35).” (Pról. 8-13).
O salmo 94 é ou era cantado todos os dias no início do Ofício de Vigílias na liturgia beneditina: é por excelência o salmo invitatório, o salmo que convida à oração com suas diferentes partes.
Primeiramente, um apelo geral ao louvor: “Vinde, exultemos de alegria pelo Senhor, aclamemos o Rochedo que nos salva! Avancemos para Ele com ações de graças! A Ele, nossos cânticos e aclamações!”[1]. Em seguida, uma ação de graças pela obra da criação: “Ele é o grande Deus, o Senhor, o Rei, maior do que todos os deuses! Em Sua mão, as profundezas da terra; também a Ele pertencem os cumes das montanhas. A Ele o mar, pois foi Ele que o fez, e os continentes que Suas mãos modelaram.” Antes mesmo de ser reconhecido como o Criador de todas as coisas, o Senhor é confessado como o Deus único, o Deus grande acima de todas as grandezas, de todas as alturas. É por isso que Ele pode segurar em Sua mão todos os elementos criados, das profundezas da terra aos cumes das montanhas, em toda a extensão dos mares e continentes.
Depois, uma oração agradecida pela obra da salvação em relação direta com a caminhada no deserto e as maravilhas ali realizadas pela mão do Senhor. Esta oração é acompanhada de um convite ao arrependimento, garantia da verdadeira ação de graças: “Vinde, inclinemo-nos, prostremo-nos! Adoremos o Senhor que nos fez! Sim, Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz, o rebanho guiado por Sua mão... Não endureçais vossos corações como no deserto, como no dia da revolta e do desafio, quando vossos pais me desafiaram e provocaram, apesar de terem visto o que fiz!” Esta ação de graças pela redenção e este apelo ao arrependimento estão ligados a uma nova confissão de fé: “Ele é nosso Deus, e nós somos o povo que Ele conduz...”.
Por fim, o salmo termina com uma evocação da promessa feita por Deus ao homem de compartilhar Sua vida em Seu repouso eterno, no último sábado, se o coração humano não se desviar, com uma nova referência ao pecado de Israel no deserto: “Quarenta anos, suportei essa geração; eu disse: ‘É um povo de coração desviado; eles não querem saber dos meus caminhos’. Por isso, jurei na minha ira: ‘Jamais entrarão na terra do meu repouso!’”.
No meio desse conjunto, surge o versículo citado por São Bento: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações!”. Portanto, neste salmo, há a dimensão da memória, a da promessa e a que dá sentido a ambas, a da atualidade cotidiana. Esta é uma das chaves da espiritualidade cristã. São Bento, seguindo a tradição monástica, é um comentarista particularmente notável.
Do que se trata? Trata-se de viver cada dia acordado. Cada manhã e cada instante do dia são um chamado feito pela voz de Deus. Este chamado só pode ser percebido por aqueles que estão atentos a ele. Aqueles que abrem os olhos e os ouvidos de seus corações para ver e ouvir “o que o olho não viu, o ouvido não ouviu, o que Deus preparou para aqueles que O amam” (1 Cor 2, 9 citado por RB 4, 77). O que pode nos tornar infelizes nesta vida é estar aprisionado na ilusão dos sentidos externos. Se vejo apenas com meus olhos físicos, se ouço apenas com os ouvidos do meu corpo, ainda não vi nem ouvi nada que possa me permitir saborear a verdadeira vida.
A cada dia, a cada segundo, através dos seres e das coisas criadas, nos é dada a totalidade da existência. No entanto, muitas vezes, estamos dormindo e só sonhamos. É urgente, constantemente urgente, acordar, levantar, ressuscitar e começar a ouvir: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais vossos corações”. Este é um dos propósitos essenciais do Evangelho. Para poder ouvir, o coração precisa ser tocado, convertido, circuncidado. É preciso reler a este respeito o discurso da montanha no início do Evangelho de São Mateus. Desde o primeiro versículo do Prólogo, São Bento nos convida: “Escuta, inclina o ouvido do seu coração” (Prol. 1).
Ao comentar o versículo citado do Salmo 94, a epístola aos Hebreus atualiza de maneira especialmente forte nossa relação com a Palavra de Deus, que o homem recebe para colocar em prática, a fim de poder saborear um dia o descanso de Deus: “Viva é a Palavra de Deus, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, penetra até o ponto de divisão entre a alma e o espírito, entre as articulações e a medula, e pode julgar os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura invisível diante dela, mas tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas” (Hb 4, 12-13). Nossa vida está totalmente orientada para essa perspectiva do hoje da Palavra que ocorre em nossas vidas humanas para que possamos dizer com Cristo: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos esta passagem da Escritura” (Lc 4, 21)?
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje” (Mt 6, 11; Lc 11, 3)
Não basta inclinar o ouvido do coração e não o endurecer para ouvir o chamado do Senhor por meio de Sua Palavra diária; é também necessário aceitar receber o que o Senhor providencia para nós diariamente, de acordo com Sua vontade.
É bom aqui fazer referência à experiência de Israel no deserto. O Senhor providencia gratuitamente para a fome de Seu povo, enviando durante a noite “uma camada de orvalho ao redor do acampamento”. Essa camada de orvalho, uma vez evaporada pela manhã, revela na superfície do solo algo pequeno e granuloso. “Este é o pão que o Senhor vos deu para comer. Eis o que o Senhor ordenou: Cada um recolha conforme o que pode comer”. E Moisés lhes disse: “Que ninguém guarde nada para o dia seguinte”; “Eles recolhiam a cada manhã, cada um conforme o que podia comer, e quando o sol esquentava, aquilo derretia” (cf. Ex 16, 13-21). O alimento diário do maná descido do céu é, portanto, um elemento-chave da espiritualidade do hoje proposto por Deus ao Seu povo.
O Evangelho de São Mateus faz um belo comentário sobre este dom do céu:
“Não vos inquieteis pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. [...] Portanto, não vos inquieteis, dizendo: o que vamos comer? O que vamos beber? O que vamos vestir? [...] Vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e tudo isso vos será dado por acréscimo. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados. A cada dia basta o seu próprio mal” (Mt 6, 25-34).
Será que devemos levar esses textos ao pé da letra? Não, isso não é suficiente, é necessário interpretá-los. Mas também é indispensável saber viver essa entrega diária com o abandono de uma fé sempre a ser renovada. Está claro que nossa busca raramente é, em primeiro lugar, pelo Reino de Deus, e é isso que apresenta um problema. Se, como os israelitas no deserto, quisermos fazer provisões de maná, se quisermos acumular o dom de Deus, se não aceitarmos receber diariamente apenas os dons que nos são necessários, não poderemos realizar a vida de Deus neste mundo.

O discurso sobre o Pão da Vida apresenta o cumprimento desse sinal do maná. Cristo nos revela que Ele mesmo é o Pão da Vida. “Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram; este é o pão que desce do céu, para que todo o que dele comer não pereça. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém dele comer, viverá eternamente” (Jo 6, 49-51).
Nosso único verdadeiro alimento cotidiano é Cristo, dado para que o mundo tenha vida. Recebemos isso em Sua palavra ruminada e na oração, no pão da Eucaristia e nos sacramentos, bem como na comunhão fraterna.
Assim, “O pão nosso de cada dia nos dai hoje” só pode ser compreendido plenamente nessa relação diariamente renovada com Cristo entregue. É assim que podemos buscar o Reino e Sua justiça, é assim que podemos nos contentar com o alimento cotidiano.
Toda a vida de Cristo é assim, como relata São Lucas à sua maneira: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (4, 21); após a cura do paralítico, as testemunhas exclamam: “Hoje, vimos prodígios” (5, 26). “Eis que expulso demônios e realizo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia serei consumado! Mas hoje, amanhã e no dia seguinte, devo seguir meu caminho, pois não é conveniente que um profeta pereça fora de Jerusalém” (13, 32-33). “Zaqueu, desce depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa... Hoje, a salvação chegou nesta casa...” (19, 5-9).
Assim, é possível nos interrogar a respeito de nosso alimento diário. Estamos realmente recebendo Cristo em primeiro lugar para cumprir a vontade de Deus, ou estamos nos preocupando com um acúmulo completamente supérfluo que não podemos levar para o túmulo? Nossa vida está sob o sinal primário da Eucaristia, com todas as suas dimensões espiritual, pessoal, comunitária e social, ou é algo particularmente vão? Aceitar receber o alimento cotidiano do Cristo é aceitar que nossos planos imediatos sejam desviados e vivê-los alegremente seguindo Jesus que sobe a Jerusalém em direção ao Seu Êxodo.
São Bento prescreve ao abade lembrar este ensinamento do Evangelho, para que não esqueça “não trate com mais solicitude das coisas transitórias, terrenas e caducas, negligenciando ou tendo em pouco a salvação das almas que lhe foram confiadas, mas pense sempre que recebeu almas a dirigir, das quais deverá também prestar contas. E para que não venha, porventura, a alegar falta de recursos, lembrar-se-á do que está escrito: ‘Buscai primeiro reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo’” (RB 2, 33-35).
O Dia do Senhor
Mas o hoje real na vida dos crentes é o grande hoje de Deus que se estende por toda a história e muito além. De fato, para o Senhor, “mil anos são como um dia” (Sl 89), e “mais vale um dia nos átrios do Senhor que mil em minha morada” (Sl 83, 11). Este hoje de Deus é o da Sua vinda permanente. O Senhor não cessa de vir, Ele visita a Sua criação, dirige-lhe a palavra, encarna-se nela, promete a Sua vinda gloriosa quando Cristo for tudo em todos.
Assim, a Revelação bíblica está pontuada pela proclamação deste hoje de Deus que se manifesta constantemente na vida dos homens: “Houve uma tarde, houve uma manhã, o primeiro dia” (Gn 1,5); “Este é o dia que o Senhor fez” (Sl 117, 24); “Naquele dia...” incessantemente proclamado nos profetas; esta expressão não visa necessariamente uma projeção no futuro, é um anúncio do dia de hoje, onde cada um é chamado a escolher entre a vida e a morte (cf. Deuteronômio). O Evangelho de São Lucas abre-se com o anúncio da Boa Nova: “Hoje, na cidade de Davi, nasceu-vos um Salvador” (Lc 2, 11), e conclui com a promessa: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).
Mas o que expressa melhor este grande dia de Deus é o hoje da celebração litúrgica. Na liturgia latina, hodie ressoa como uma esperança extraordinária ao longo de todo o ano. O hodie mais famoso é o de Natal: “Hodie Christus natus est…” – “Hoje, Cristo nasceu para nós; hoje, o Salvador apareceu; hoje os anjos cantam na terra, os arcanjos se alegram; hoje os justos exultam, dizendo: ‘Glória a Deus nas alturas’” (antífona do Magnificat das II Vésperas de Natal). Essa antífona encontra sua preparação no ofício da Vigília de Natal, onde é anunciado o hoje da revelação: “Hoje sabereis que o Senhor virá, e amanhã vereis a sua glória”. Podemos adicionar a essa antífona de Natal a da Epifania: “Hodie caelesti sponso” – “Hoje, a Igreja se uniu ao seu Esposo celeste, pois Cristo a lavou de seus pecados no Jordão; os Magos correm com seus presentes para as núpcias reais, e os convivas se alegram com a água transformada em vinho” (antífona do Benedictus das Laudes da Epifania). A antífona do Magnificat das II Vésperas retoma esse tema: “Hoje, a estrela guiou os Magos até o presépio; hoje, a água se transformou em vinho no festim nupcial; hoje, no Jordão, Cristo quis ser batizado por João, para nos salvar”. No mesmo espírito, a antífona do Magnificat das II Vésperas de Pentecostes anuncia o Mistério atualizado neste dia: “Hoje se completaram os dias de Pentecostes; hoje, o Espírito Santo apareceu aos discípulos sob a forma de fogo e derramou sobre eles dons misteriosos; ele os enviou pelo mundo para pregar e testemunhar. Aqueles que crerem e forem batizados serão salvos”. No meio de tudo isso, há obviamente o domingo de Páscoa e o Tempo Pascal, onde ressoa o “Haec dies quam fecit Dominus” tirado do Salmo 117, 24, o salmo pascal por excelência: “Este é o dia que o Senhor fez, exultemos e alegremo-nos nele”. Este dia é o Dia dos dias: o verdadeiro hoje da vida divina. Algumas antífonas marianas recentes (8 de dezembro, 11 de fevereiro) retomaram esse tema, e a liturgia beneditina o aplicou a São Bento, Santa Escolástica e São Mauro. O domingo é o grande Dia do Senhor, ao mesmo tempo o primeiro dia da criação, assim como da redenção na ressurreição de Cristo, e o oitavo dia, dia além dos dias, dia de Deus transfigurando todas as coisas, dia de sua vinda. O sacramental do domingo é verdadeiramente de grande importância para a expressão da vida de Cristo. Devemos desenvolver em cada uma de nossas vidas uma espiritualidade deste cotidiano que é o hoje de Deus. É o dia do nascimento, é o dia do começo, do recomeço, é o dia da ressurreição e é também o hoje da eternidade, o dia em que as aparências desaparecem para dar lugar à realidade, o dia do discernimento, que é outro nome para o julgamento.
Ao cantar os mistérios no hoje, a liturgia faz com que eles se realizem aqui como figura. Os fiéis tornam-se assim contemporâneos dos mistérios celebrados, que tomaram forma num dia do tempo e que estão sempre atuais. Este é o verdadeiro sentido do memorial cristão.
Um velho monge de nosso mosteiro, falecido há alguns anos, viveu a última parte de sua vida na convicção de que cada manhã era domingo, e como era sacristão, ele preparava diariamente tudo o que era necessário para a liturgia dominical. Claro, esse monge idoso tinha perdido um pouco o juízo, a menos que, na verdade, tenhamos sido nós que a perdemos, e ele, nessa candura, a tenha recuperado após cerca de setenta anos de vida monástica.
Um monge do deserto do Egito, no século IV, repetia a si mesmo toda manhã: “Hoje, eu começo”. Que este começo nunca deixe de habitar nossa ação: assim iremos, nas palavras de Gregório de Nissa, “de começo em começo, por começos que não têm fim”, e é assim que chegaremos ao dia sem declínio que Deus nos oferece já em figura.

Conclusão
Não basta estabelecer alguns princípios de análise; é igualmente necessário derivar deles consequências concretas.
Será que realmente ouviremos o chamado que ressoa em nossos ouvidos vindo de Deus? Teremos o coração suficientemente receptivo para entrar no hoje da Palavra? Estamos verdadeiramente nos perguntando se estamos mantendo contato com a Palavra divina de alguma forma (leituras bíblicas e espirituais, oração, meditação, ruminação, lectio divina)? Será que nosso hoje é o advento de Deus em nós e ao nosso redor, procurando e chamando Seu operário de maneiras sempre inesperadas? Faremos da nossa vida um companheirismo cotidiano? Como partilhar o Pão de Deus com irmãos e irmãs? Como receber o maná, que é o verdadeiro Pão da Vida? É evidente que, quando sabemos que metade dos habitantes do nosso planeta morre de fome, realmente nos perguntamos onde está a oração: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”; há, então, impossibilidade de nos tornarmos discípulos na travessia do deserto deste mundo?
Finalmente, como nossa vida testemunha o Dia além dos dias? Sabemos relativizar os bens imediatos para nos entregarmos a Deus, com a coragem de um trabalho incansável, mas desprovido da preocupação de nos promovermos? O dia de Deus é sempre um dia de julgamento, onde somos desnudados para sermos verdadeiramente o que devemos ser: simples criaturas, simples servos que se reconhecem como filhos de Deus para a eternidade. Aí está o nosso tesouro, e “onde está o teu tesouro, aí também estará o teu coração” (Mt 6, 21).
“Este é o dia que o Senhor fez; alegremo-nos, passemo-lo na alegria” (Sl 117, 24).
[1] As citações dos salmos são provenientes da tradução do saltério pelos monges de Ligugé, publicada em “Le Psautier de Ligugé”, edições Saint-Léger, 2019.
Santa Macrina, “Toda a sua vida foi liturgia”
3
Perspectivas
Irmã Véronique Dupont, osb
Abadia Notre-Dame de Venière (França)
