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Formação monástica hoje (Segunda parte)
Boletim da AIM • 2021 • No 120
Índice
Editorial
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB,
Presidente da AIM
Lectio Divina
Somos formados “permanecendo com”
Dom Maksymilian R. Nawara, osb
Perspectivas
• A formação para a vida monástica
Dom Gregory Polan, osb
• A terra fecunda da formação monástica
Dom Mauro-Giuseppe Lepori, ocist
• O Instituto Monástico Beneditino (BMI)
Padre Peter Eghwrudjakpor, osb
• formação “Ananias”
Irmã Marie Ricard, osb
• A formação monástica no Vietnã
Irmã Maria Lúcia, ocist
• A formação monástica na Tanzânia
Irmão Pius Boa, osb
• As sessões de formação no mosteiro de Mvanda (RDC)
Madre Anna Chiara Meli, ocso
• Uma resposta da congregação beneditina inglesa ao desafio da formação contínua
Padre Chad Boulton, osb
Testemunho
Os estudos de teologia no mosteiro
Irmã Clara Cachia, osb
Abertura ao mundo
Desafios para os cristãos e para os consagrados num mundo agitado
Professor Italo de Sandre
Uma página de história
O mosteiro São Bento de Volmoed
Irmão Daniel Ludik, Order of Holy Cross
Monges e monjas, testemunhas para o nosso tempo
• Madre Maria Chantal, osb
Irmãs do Mosteiro do Encontro
• Charles de Foucauld, profeta do nosso desafio monástico
P. Michael-Davide Semeraro, osb
Notícias
• O mosteiro de Santa Maria, Mãe da Igreja
As Irmãs de Palaçoulo, ocso
• Monges beneditinos católicos coptas
Irmão Maximillian Musindal, osb
• Fechamento da abadia Sainte-Marie-du-Désert (França) e abertura do «Le Village de François»
Editorial
O assunto da formação é inesgotável. No começo, não pensamos consagrar-lhe dois números da revista, mas agora, até dois parecem insuficientes. O fato de falar de formação monástica implica, obrigatoriamente, uma certa aproximação do monaquismo e, mais amplamente, abordar a fé cristã e sua transmissão.
O Abade Maksymilian R. Nawara, antigo abade de Lubín, na Polônia, e atual Presidente da Congregação da Anunciação, introduz-nos nesta reflexão com uma lectio sobre o chamado dos primeiros discípulos em São João.
O Abade Primaz dá-nos seu ponto de vista, assim como o Abade Geral dos Cistercienses.
São depois apresentados vários exemplos de formação monástica, assim como um ou outro testemunho, e ecos de certas iniciativas.
Italo de Sandre partilha suas preocupações sobre a ligação entre a vida monástica e o mundo presente.
Depois as habituais rubricas: Liturgia, Uma página de história, Monges e monjas testemunhas para o nosso tempo, Notícias etc.
Deixemo-nos “informar” no mais fundo de nós mesmos para poder realizar aquilo a que somos chamados. Nestes tempos de crise é, mais do que nunca, o momento de cultivar o fundamental, que nos permitirá ultrapassar os obstáculos e construir um mundo novo.
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Artigos
Treinar-se para a corrida monástica
1
Dom Jean-Pierre Longeat, OSB
Presidente da AIM
Treinar-se para a corrida monástica
Na última parte do Prólogo da Regra, São Bento apresenta o mosteiro como uma escola do serviço do Senhor. Isto significa que ele quer fazer da vida monástica um lugar de formação permanente. Ainda no Prólogo apresenta algumas características do ensino, que deve ser partilhado nesta escola; o primeiro e o mais importante é a qualidade da escuta para poder pôr em prática, eficazmente, o mandamento do amor.
Mas permitam-me evocar aqui um dos versículos do Prólogo, que me parece, dá um acento útil, hoje, na matéria da formação. São Bento não visa simplesmente a perfeição de uma observância exterior, que seria o penhor de um sucesso ilusório na esfera do tempo presente; acentua uma perspectiva que integra a dimensão da vida eterna, já ativa agora, mas em movimento para além dos limites do hoje. É por isso que ele usa o versículo tirado de São João que caracteriza o ideal beneditino:
“Correi enquanto tendes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos envolvam” (Jo 12, 35 citado em Prol. 13).
Em São João a luz, de que se trata, é o próprio Cristo, e as trevas o adversário. São Bento dá um sentido um pouco diferente a este versículo, até o deforma, acrescentando “da vida” à “luz” e “da morte” às “trevas”. Quer insistir, assim, de modo geral sobre o drama das esco-lhas do ser humano, opondo o curto tempo da vida terrestre e o longo “tempo” da morte eterna. Insiste, assim, sobre a corrida necessária que acentua a urgência.
1. Perspectiva escatológica e consequências
Os monges são chamados a viver de um modo muito característico, na perspetiva escatológica. São Bento mesmo admitindo que os dons eternos já são oferecidos aqui (cf RB 7; 72 e 73) olha a atividade do monge numa tensão do não ainda diante do que será eternamente. Um certo número de versículos da Regra evoca concretamente esta perspetiva: assim São Bento convida os monges a “desejar a vida eterna com toda a cobiça espiritual” (4,46) e a agir com “o bom zelo que conduz a Deus e à vida eterna” (72,2); para isso devem “nada absolutamente preferir a Cristo que nos conduza juntos para a vida eterna” (72,11). Por isso São Bento pede aos monges insistentemente: “cumpre correr e agir, agora, de forma que nos seja proveitoso para sempre” (Prol. 44). No fundo, na vida monástica, formamo-nos e preparamo-nos para a vida super abundante do Reino eterno. E o abade “deve lembrar-se sem cessar que no terrível dia do juízo, deverá prestar contas” (2, 6, 34, 37, 39-40).
Lembremos aqui a oração característica da vida monástica, a do Ofício das Vigílias, que é um tempo de vigília voltado para a vinda do Cristo, na esperança da luz. Tudo isto é vida cristã, mas os monges acentuam particularmente esta dimensão. É realmente o que caracteriza melhor a vida monástica em relação ao tempo e ao espaço, que é diferente do modo habitual dos seres humanos verem essa dimensão. E é isso que, às vezes, torna difícil que os monges aceitem e compreendam.
2. Correr
O fato de entender a vida como uma breve passagem, em vista da vida eterna, desde já e para além da morte, convida os monges a não perderem tempo, e portanto a correrem para o objetivo. São Bento diz isto várias vezes.
Há, antes, de mais um princípio geral:
“Se fugindo das penas do inferno, queremos chegar à vida eterna, enquanto é tempo, e ainda estamos neste corpo e é possível realizar todas estas coisas no decorrer desta vida de luz, cumprer correr e agir, agora, de forma que nos seja proveitoso para sempre” (Prol 42-44)
Esta passagem está muito próxima da citação de São João 12, 35 (cf acima). Concretamente, portanto, se queremos viver assim, temos de ter no coração o desejo de habitar na morada do Reino, sabendo que só se chega aí correndo “pelas boas obras” (Prol. 22). Assim com “o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e corre-se pelo caminho dos mandamentos de Deus” (Prol. 49). Há aqui como uma consequência da disposição interior, na qual o monge colocou o seu desejo: orientou o coração para a vida eterna e isso produziu uma tal dilatação, que corre-se agora no caminho dos mandamentos de Deus; assim o mandamento é o que deve de ser, não uma ordem que vem de fora, mas um objetivo, conforme a palavra grega entolé, de telos, quer dizer que leva ao fim que se quer.
Depois de ter colocado este princípio, São Bento pode pensar em situações particulares, cujo sentido só é perceptível em relação com este objetivo. O abade, por exemplo, deve apressar-se (currere) “empenhar-se com toda a sagaccidade e indústria para que não perca alguma das ovelhas a si confiadas” (RB 27, 5).
O cap. 5 da Regra está todo ele nesta perspectiva de uma vida que quer responder imediatamente ao apelo recebido. O verbo currere não aparece, mas encontram-se expressões muito fortes, que colocam a pessoa na disposição de uma corrida para a vida eterna:
E os discípulos “por causa do santo serviço que professaram, ou por causa do medo do inferno, ou por causa da glória da vida eterna, logo que (mox) ordenada pelo superior, desconhecem o que seja demorar na execução, como sendo por Deus ordenada... são esses mesmos que, deixando imediatamente as coisas que lhes dizem respeito e abandonando a própria vontade, desocupando logo (mox) as mãos e deixando inacabado o que faziam, seguem com seus atos, tendo os passos já dispostos para a obediência. Na prontidão do temor de Deus não há intervalo entre a ordem recém-dada pelo superior e a perfeita obediência do discípulo (...) Apodera-se deles o desejo de caminhar para a vida eterna” (RB 5, 3. 9-10)
O movimento da obediência vale também para a resposta dada ao apelo para o Ofício Divino:
“Estejam os monges sempre prontos, e, assim, dado o sinal, levantando-se sem demora, apressem-se mutuamente para o Ofício, porém com toda a gravidade e modéstia” (22,6).
Esta ideia vem uma segunda vez na Regra:
“Na hora do Ofício Divino, logo que for ouvido o sinal, deixando tudo que estiver nas mãos, corra-se com toda a pressa, mas com gravidade, para que a escurrilidade não encontre incentivo. Portanto nada se anteponha ao Ofício Divino” (RB 43, 1-3).
A primeira passagem é tirada do capítulo sobre “Como devem dormir os monges” e a segunda “Dos que chegam tarde ao Ofício Divino ou à mesa”. Reconheçamos que temos aqui uma característica da vida monástica beneditina. Impressiona sempre nos nossos mosteiros, ver como os monges se apressam a ir para o ofício divino, qualquer que seja a razão que os faz apressarem-se; não é certo que seja sempre o não querer perder a vida eterna!
Há uma outra dimensão da pressa a privilegiar na vida do monge: a acolhida de um hóspede que bate à porta do mosteiro:
“Logo que um hóspede for anunciado, corra-lhe (occuratur) ao encontro o superior e os irmãos, com toda a solicitude da caridade” (RB 53, 3); “Logo (mox) que alguém bater, ou um pobre chamar, (...) com toda a mansidão do temor de Deus, o porteiro responda com presteza (festinanter) e com o fervor da caridade” (RB 66, 3-4).
Aqui está outra característica da nossa vida beneditina, mesmo se hoje é difícil fazer face, com prontidão, a todos os pedidos, e que, muitas vezes exigem um mínimo de distância para a caridade ser melhor vivida.
O tema da corrida vem da Bíblia. A Palavra de Deus “de um extremo do céu, põe-se a correr” (Sal. 18) “Desce do trono real” (Sab 18, 15); “Deus a envia e corre veloz” (Sal 147, 15). Os homens de Deus, os verdadeiros profetas, os sacerdotes santos, os reis justos correm para pôr em prática a Palavra: “Como são belos os pés dos que anunciam a paz”.
Multidões acorrem ao encontro de João Batista no deserto, e ao encontro de Jesus ao longo de seu ministério público. Maria parte apressadamente para casa de sua prima Isabel depois da anunciação. Com Jesus, às vezes nem se tem tempo de comer em certos momentos. Os discípulos correm para o túmulo, e voltam correndo para anunciar a ressurreição do Senhor. Depois de Pentecostes os discípulos correm em todas as direções, para proclamar o Evangelho até aos confins do mundo. São Paulo corre tendido para a meta (Fil. 3).
É urgente correr por causa da Boa Nova, seja para a escutar, seja para a proclamar, pois o tempo é curto: “Completou-se o tempo, o Reino de Deus está presente, não há tempo a perder, convertei-vos e acreditai na Boa Nova”.

3. Correr sem se apressar nestes tempos que são os últimos
Como conclusão eis alguns pontos sobre este tema da formação, de um treinamento monástico, caro a São Bento.
Os monges correm e apressam-se, é uma evidência em todos os mosteiros. Mas de que corrida se trata? Será que é a corrida de alguém que tomou consciência que a vida é tão breve que não há tempo a perder?
Nossa agitação é muitas vezes marcada pelas pressões da sociedade contemporânea: trabalho, administração, lazer, tudo é submetido a um ritmo, para não se ser desclassificado, marginalizado. É verdade que muitos setores devem respeitar imperativos muito obrigatórios. Mas ficamos por aí? Nossa corrida não deverá se converter em vista do último desejo, o da realização da vida em Deus na comunhão da fraternidade humana?
Os monges são essencialmente como todos os cristãos, mas talvez mais sensivelmente homens do oitavo dia. Este dia está além dos dias, além da história na história. O sentido da vida monástica está numa saída do mundo, nos dois sentidos da palavra, um ser capaz de estar no mundo, sem ser do mundo.
Esta tomada de distância é em vista de uma experiência de Deus, por meio da libertação da tirania das paixões, e por meio da oração sem os constrangimentos do mundo, em que a ideia de tempo e de espaço não estão organizados em função desta prioridade.
Se se deve correr nos caminhos do amor, das boas obras, tais como estão descritas em RB 4, no caminho dos mandamentos, com o coração dilatado, na oração, na hora do ofício, na obediência, no cuidado dos pecadores, para não perder nenhuma ovelha do rebanho, na acolhida dos hóspedes, ou daqueles que batem à porta do mosteiro.
Trata-se de cortar com as coisas do mundo, sem nenhum desprezo, mas numa hierarquia de valores diferente.
Temos verdadeiramemnte os meios para uma tal aprendizagem, um tal treinamento, uma tal formação?
Somos formados “permanecendo com”
2
Lectio divina
Dom Maksymilian R. Nawara, osb
Abade Presidente da Congregação da Anunciação
Somos formados “permanecendo com”
“No dia seguinte João ainda se encontrava lá com dois dos seus discípulos. Pousando os olhos em Jesus que passava, disse: “Eis o Cordeiro de Deus”. Os dois discípulos escutando o que ele disse, seguiram Jesus. Jesus voltando-se viu que eles o seguiam e perguntou “O que procurais?” Eles responderam: “Rabi – que quer dizer Mestre –, onde moras?” Ele disse-lhes “Vinde e vede”. Eles foram, viram aonde morava e ficaram com ele aquele dia. Era pela décima hora (mais ou menos 4 da tarde)” Jo 1, 35-39
João Batista é o mensageiro que veio como testemunha da luz (Jo 1,6), ele endireitou o caminho para o Senhor (Jo 1,23) para dar a conhecer o Cordeiro de Deus (Jo 1, 29). Ele conhecia Jesus e esperava-o, mas precisou de tempo com Jesus para se formar.
No evangelho de João, o Batista em conversa com os fariseus revela a sua identidade: “Eu não sou o Messias” (Jo 1, 20-27). Pouco tempo depois, o Evangelho diz: “No dia seguinte” João encontrou Jesus e reconheceu-o, e deu testemunho dele aos seus discípulos “Ele é o Filho de Deus” (Jo 1, 34). Apesar disso, depois de ter ouvido o que diziam de Jesus, João que estava na prisão, enviou mensageiros a Jesus para lhe perguntar: “És tu aquele que esperamos?” (Mat 11, 3). Vê-se claramente que ele precisou de tempo com Jesus para se formar.
Vivemos num momento da história em que os progressos tecnológicos permitem-nos fazer coisas mais eficaz e rapidamente. Temos acesso a diversas coisas muito mais facilmente. Além disso o acesso ao saber está ao alcance da mão e o ensino à distância está disponível dentro do claustro. Mas, ao mesmo tempo, um dia continua a ter 24 horas e a semana sete dias. Poderíamos pensar que temos mais tempo, e no entanto...vivemos numa época em que não temos tempo. Mesmo nos mosteiros ouve-se, muitas vezes, os monges, ou as monjas lamentarem-se por não terem bastante tempo para fazer tudo o que gostariam.
O Evangelho nos para e chama a nossa atenção para os fundamentos da formação humana. É preciso tempo para que um encontro se torne conhecimento. É preciso tempo para que um conhecimento seja um testemunho. Sem esse tempo o testemunho não tem valor, porque falta-lhe experiência.
Ficai com Jesus
Dois discípulos de João ouviram o mestre falar do Cordeiro de Deus e seguiram Jesus. Começa para eles uma nova etapa: os discípulos da Voz tornam-se discípulos da Palavra.
Seguir Jesus, seguir o mesmo caminho do Filho, é uma síntese da experiência cristã. O cristianismo não é um conjunto de belas histórias, ou de imperativos morais; é a realidade da pessoa de Jesus que é seguida, porque amada: “Quem me segue terá a luz da vida e não andará nas trevas” (Jo 8, 12).
Em João 1, 36 Jesus volta-se para os que o seguem, e pela primeira vez (no evangelho de João) abre a boca e pronuncia suas primeiras palavras em forma de pergunta”Que procurais?” Esta pergunta é crucial por muitos motivos. O que é que eu procuro na vida, no meu trabalho, nas minhas relações? O que procuro na Igreja, na minha comunidade monástica? Todas estas perguntas, e muitas outras, são importantes a todos os níveis da formação monástica. A pergunta de Jesus está igualmente ligada ao tempo, e é muito justa: “Eu passo o tempo sobre o que procuro. O que é que procuro e pelo qual invisto tempo?” A resposta dos discípulos não é direta. Não dizem “Procuramos isto ou aquilo”, nem dizem “Procuramos o Messias”. Fazem outra pergunta: “Onde moras, Rabi?” Esta pergunta expressa o desejo profundo de ficar com Jesus. E Jesus responde: “Vinde e vede”.
É aqui que começa o caminho do discípulo da Palavra. Passar das ideias, das teorias, das declarações, das manifestações e slogans para uma partilha de vida. Partilhar minha vida é partilhar meu tempo com alguém, com esse Alguém que encontrei, com Jesus. Não há outro meio para verdadeiramente conhecer Jesus, senão partilhando tempo com ele: na oração, na lectio divina. Mas esta verdade está intimamente ligada a uma resposta honesta à pergunta: “O que procuro?” O que é que procuro e pelo qual aceito perder tempo?
Partilha
O Evangelho diz: “Foram e viram aonde morava e ficaram com ele aquele dia”. Mais uma vez encontramos afirmações chaves: É preciso tempo para que um encontro se torne conhecimento. É preciso tempo para que um conhecimento se torne testemunho. O fruto do tempo passado com Jesus é o testemunho: “Encontramos o Messias”, encontramos a luz da vida.
A formação monástica está principalmente centrada na partilha. Partilhar a vida diária, o tempo, o trabalho, tudo. Como podemos aprender a viver juntos se não partilharmos diariamente tempo com nossos irmãos e irmãs? Como podemos conhecer Jesus se não partilhamos nosso tempo com ele? Um conhecimento se tornará testemunho com o tempo. No caminho monástico somos formados estando com ele, assim como com nossos irmãos e irmãs.
“Vinde e vereis, quero dizer-vos tudo. Eu vos guiarei dia após dia”.
A formação para a vida monástica
3
Perspectivas
Dom Gregory Polan, osb
Abade Primaz
A formação para a vida monástica
O esforço essencial da formação monástica é a transformação do coração. Para falar do coração humano é um bom ponto de partida ver a perspectiva bíblica. Na Bíblia o coração é o lugar que poderíamos descrever como o resultado da união da capacidade mental com a consciência emocional.
A filosofia da Grécia antiga, que fundou e influenciou o pensamento ocidental durante séculos, separava o espírito e o coração em duas funções distintas, numa pessoa. No que vou dizer agora, gostaria de adotar a visão bíblica e considerar que o espírito e o coração podem funcionar em harmonia. Durante nossa formação monástica adquirimos muitas informações sobre as tradições antigas, personagens históricas e sobre o modo como homens e mulheres desenvolveram a vida monástica ao longo dos séculos.
O que é assim recebido, deve ser meditado para que cada um o torne seu, ao longo do tempo, para fazer dele uma disposição interior. Não é verdade que escolhemos integrar as tradições, os valores e os ensinamentos da formação monástica na nossa vida, para trazer mudanças úteis para o bem da nossa alma? Esta união harmoniosa do espírito e do coração tem uma importância duradoura, na medida em que consideramos o processo de formação como uma coisa para a vida toda. Os começos são particularmente importantes porque estabelecem um ritmo exigido para a conversão e transformação do nosso coração, ao longo de toda a vida.
Colocar o coração no centro é uma empresa para toda a vida; poder-se-ia dizer que a formação é uma viagem do coração, que uma vez começada, fica atenta ao sussurro discreto da voz de Deus nas nossas vidas. O Antigo e o Novo Testamento oferecem exemplos que podem ajudar a encontrar um sentido para o caminho da formação.
No Antigo Testamento o povo hebreu progrediu no deserto da escravidão do Egito para a liberdade na Terra Prometida, e isto sob o olhar providencial de Deus. Ao longo da viagem conheceu todos os aspectos da experiência espiritual: tentações, frustrações, traições, medo, misericórdia, compaixão, conversão e, finalmente, a realização da promessa de Deus (Dt 8, 1-18). Tendo vivido o encontro com seu pecado, e beneficiado da redenção, foi constituído por Deus como povo de fé.
No Evangelho, Lucas conta a história do mistério pascal de Jesus como uma viagem, uma espécie de relato de uma peregrinação espiritual.
“Moisés e Elias falavam da sua saída, que devia se realizar em Jerusalém (...) Quando se completou o tempo em que Jesus ia ser levado para o céu, Jesus com determinação visível no rosto, tomou o caminho de Jerusalém” (Luc 9, 31. 51).

O próprio Jesus viveu as mesmas experiências que seus antepassados na fé, quando do êxodo: tentação, frustração, traição, medo, misericórdia, compaixão, aceitação e, finalmente, a realização da promessa de Deus. Tendo partilhado totalmente nossa condição humana (com exceção do pecado), Jesus fez a viagem humana do nascimento até à morte, e finalmente a ressurreição.
Aquele que quer verdadeiramente fazer esta viagem, que quer seguir Jesus sobre o caminho da cruz, deve passar por uma série de transformações, cada vez mais profundas, no seu coração. O coração é o lugar em que a crença, o fervor e a convicção iniciais devem dar lugar a um engajamento vital, um compromisso que dura a vida toda.
A formação para a vida monástica deve ter em consideração o mundo atual em que vivemos, a cultura em que fomos educados, os valores que assumimos inconscientemente. Os progressos tecnológicos que aceleram o ritmo da vida, a cultura do consumo em que estamos, talvez involuntariamente, integrados, o nível de barulho a que nos habituamos, tudo isso faz parte da nossa vida, sem que o realizemos verdadeiramente.
Mas se os problemas tecnológicos fazem diminuir, ou parar nosso sentimento de progresso, ou de produtividade, realizamos logo o impacto que a tecnologia pode ter na nossa vida cotidiana. É quando não podemos usar uma coisa, que vemos como éramos dependentes dela. É só quando nos encontramos num lugar, ou numa atmosfera de silêncio absoluto, que percebemos o papel do ruído, uma vez ausente.
Tais tomadas de consciência podem tornar-se ocasiões de revelação e de auto conhecimento. São momentos em que podemos fazer estas perguntas de aprofundamento: “Que faço da minha vida? Para onde vou? Como penso atingir meus objetivos? E tenho paz interior que me permita responder a perguntas tão profundas?”
Penso que o periodo de formação mais importante para nós é o que se situa entre os 20 e 30 anos. Saímos da adolescência e entramos na idade adulta; começamos a nos voltar para o futuro e vemos as questões e os problemas que terão impacto na nossa vida, nos anos futuros.
É durante esses anos que acontecem as mudanças no modo de viver, de se comportar e de acreditar. Dirigimo-nos para a vida monástica durante esses anos de formação, ou mais tarde, depois que uma formação significativa já tenha acontecido; esses anos têm um efeito duradouro sobre o modo como nos vemos, vemos o nosso mundo e sobretudo como vemos Deus.
São os anos em que muitas coisas mudam: na nossa vida, no nosso corpo, na nossa visão do mundo, nas nossas capacidades intelectuais, no modo de captar certos valores. A palavra “conversão” tem muito sentido no nosso mundo de hoje. Uma conversão é muitas vezes vista como um outro modo de conceber a vida e seu sentido, de a ver de modo diferente; o termo sugere uma mudança radical na vida e no olhar.
Mas existem também “pequenas conversões”, modificações mais discretas no modo de viver, às vezes só no fim da vida. Certas pessoas escolhem não se casar, não formar família senão depois de ter já uma sólida carreira. Outros decidem ter diplomas universitários para terem um emprego antes de escolher o casamento ou a vida monástica. O que é importante é saber até que ponto a pessoa sondou seu coração para tomar essas decisões. A pessoa conhece-se? Tem uma vida interior? Deu a si mesmo tempo e ocasião, meios, para conhecer seu coração?
Há uma virtude que deve ser praticada durante a viagem monástica às profundezas do coração: a confiança. A virtude da confiança não é evidente hoje, num mundo de promessas não mantidas, de mentiras, de corrupção em pessoas com postos importantes, neste mundo centrado na tecnologia e que muda profundamente, e a uma velocidade vertiginosa. No entanto para o trabalho e o processo de formação a confiança é essencial.
A confiança deve permitir-nos fazer esse ato de fé importante: contar com alguém, confiar-se a, submeter-se a um Deus que, embora seja invisível aos olhos humanos, faz maravilhas aos olhos daqueles que têm fé.
Abraão é um dos principais modelos para a confiança. Sabendo somente que alguma coisa no seu íntimo o chamava para mudanças importantes na sua vida, Abraão confiou nessa voz interior discreta; nossa firme convicção é que o impulso interior que o moveu era a voz de Deus (Gen 12-14; 22, 1-19). A virgem Maria é igualmente um modelo de confiança tanto no seu chamado, como na sua vida de fé (Luc 1,38; 2,19; 2,51b).
Engajar-se num caminho de formação e permanecer nele, exige um nível de confiança que fará aceitar as instruções que nos são dadas; elas provam os espíritos, sondam as profundezas no processo de apropriação, e deixam sempre tempo para encontrar o lugar do coração. Neste processo de exploração interior, a confiança é um componente essencial: vão aparecer inevitavelmente dificuldades no começo, mas é normal, porque passamos de uma perspectiva de um estado de vida laica, para a da tradição monástica. Os dois têm alegrias e dificuldades, mas pelo menos deve-se tomar a decisão de entrar nessa viagem da formação monástica com confiança. O salmista dá, aliás, uma instrução simples e direta a todos os que se encontram nesta situação: “Hoje se ouvirdes a voz do Senhor, a palavra de Deus, não fecheis os vossos corações” (Sal 94 / Heb 95, 7b-8a).
Quando uma pessoa está pronta para confiar, isso a faz crescer. A confiança nos encoraja a pegar tempo suficiente para poder assimilar os valores novos e importantes, que nos serão propostos. Mas, também, a confiança vai exigir que se deixe certas coisas do mundo. Para que uma verdadeira evolução do coração possa acontecer, precisamos abandonar comportamentos e atitudes do passado, mesmo que tenham sido atraentes e sedutores. A confiança pode ser um verdadeiro desafio: pode acontecer que a resposta que damos ao que nos é pedido seja tímida e transitória, porque receamos perder para sempre o que nos é familiar e confortável. Cada um de nós terá de enfrentar momentos difíceis, em que só a confiança e o amor, que se desenvolvem lentamente, mas com segurança, nos farão avançar. Tais situações nos obrigam muitas vezes a reconhecer que é necessária a obediência.
A raiz da palavra “obediência” é latina: Audire=escutar. Alguns dicionários sugerem uma nuance “escutar a partir do interior”. Sabemos como esta “escuta interior” era importante para São Bento, para a vida monástica: é o primeiro imperativo da Regra. Além disso São Bento diz para “escutar com o ouvido do coração”. Uma tal escuta não será o fundamento do edifício interior da confiança? Pelo modo como fala disso na Regra podemos ver que importância São Bento dava à virtude da obediência para assegurar o crescimemnto e o desenvolvimento da vida monástica. Escreve no Prólogo “para que voltes pelo labor da obediência àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência” (v. 2). E no fim da Regra, no capítulo 71 sobre a obediência mútua escreve: “Não só ao Abade deve ser tributado por todos o bem da obediência, mas da mesma forma obedeçam também os irmãos (e as irmãs) uns aos outros, sabendo que por este caminho da obediência irão a Deus” (RB 71 1-2). São Bento começa a Regra descrevendo a obediência como um trabalho difícil, e termina descrevendo-a como uma benção, um bem.
Depois de ter realizado um trabalho verdadeiramente importante, podemos considerá-lo como uma benção, como uma coisa que nos fez crescer na virtude, uma experiência de vida nova. Degrau a degrau, experiência a experiência, evoluimos para uma obediência de coração, favorecida pela confiança que cresce em nós.
A carta aos Hebreus apresenta a obediência de Jesus de forma a nos inspirar e encorajar: “Embora Filho, aprendeu a obediência pelos sofrimentos de sua Paixão e assim levado à perfeição, tornou-se para todos os que lhe obedecem causa de salvação eterna”(Heb. 5, 8-9). É estranho ter de meditar sobre isto: Jesus teve de aprender a obediência! O texto nos ensina igualmente que a obediência de Jesus foi redentora para nós. Não é difícil compreender que a nossa própria obediência seja redentora, em nossas vidas e na vida dos outros. Na sua humanidade Jesus, como nós, compreendeu e aceitou a obediência para com aquele que chama Abba, assim como aos pais a quem o Pai o confiou. Lembremos a passagem em que o jovem Jesus ficou em Jerusalém para conversar com os doutores da Lei, enquanto seus pais o procuraram ansiosamente. Quando, preocupados com ele, o interrogam, ele afirma que isso fazia parte do plano de Deus para ele, o que é muitas vezes traduzido por “se ocupar das coisas do Pai” (Luc 2, 49). O texto conclui: “Desceu com eles para Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração” (Luc 2, 51). Duas coisas impressionam aqui: a obediência de Jesus, homem-Deus, a seus pais humanos e a identificação do coração de Maria, como lugar de sua meditação sobre o acontecimento, acontecimento carregado de mistério, e sobre as palavras ditas e a experiência vivida. Jesus na sua humanidade é-nos apresentado de forma a que possamos constatar o progresso nele: progresso para a maturidade perfeita que o leva a ter confiança na vontade do Pai, como um caminho bom para a sua vida. A nova humanidade de Jesus é a nossa meta aqui na terra.
Ao longo de retiros, muitas vezes falei sobre como é importante ter dias de reflexão tranquila para escutar o coração. E no entanto, e é de nos admirar, o coração, o centro do nosso ser, é o lugar para onde escolhemos algumas vezes ir, outras vezes evitamos ir, e até em certos casos resistimos à possibilidade de ir. Mas é essencial desde o começo da formação descer ao mais profundo do coração, ter um ritmo de vida que nos leve a aí voltar; senão corremos o risco de separar a nossa vida exterior do nosso eu mais profundo, e de Deus também... Uma das coisas mais tristes que pode acontecer durante a viagem da vida é evitar e até mesmo rejeitar o verdadeiro autoconhecimento. Cair em tal situação pode nos levar a sermos estranhos a nós mesmos. Voltemos muitas e muitas vezes ao coração na oração, nas provações, nas bençãos, nas nossas buscas, nos erros, nas dúvidas, e – sim – nos nossos pecados: aí encontraremos Deus, que nos ama infinitamente.
Este amor se revelará no consolo divino que nos traz, na consolação, no ensinamento outros benefícios e bençãos. Põe-nos em relação com o Deus que nos deu a vida e continua a nos ajudar. O verdadeiro caminho da formação está bem expresso na oração do salmista:
“Meu coração fala convosco confiante, Senhor é vossa face que eu procuro: não me escondais a vossa face” (Sal. 26,8 / 27,8).
Mesmo nos momentos em que o rosto de Deus parece escondido, só temos que nos voltar para o coração, aonde encontraremos o Deus de amor e de misericórdia, sempre pronto para nos receber e renovar.
A terra fecunda da formação monástica
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Perspectivas
Dom Mauro-Giuseppe Lepori
Abade Geral OCist
A terra fecunda da formação monástica
Visitei recentemente uma comunidade de monges, e durante a minha estadia pude participar de uma conversa comunitária. O assunto era a expressão muito original de um artista cristão. Conversava-se sobretudo sobre as imagens de suas obras, mas sobretudo alguns dias antes tínhamos visto um vídeo sobre ele, sobre sua caminhada humana e artística. O diálogo entre os irmãos foi muito profundo, pois cada um tinha-se deixado tocar, muito pessoalmente, pelo testemunho desse artista. No fim o abade disse que naquele ano, por causa da situação criada pela pandemia, eles tinham tido poucos momentos de formação estruturada, com convites de professores para cursos e sessões. Ele se preocupava com a formação permanente, justamente porque ao longo de anos isso tinha desenvolvido uma bela cultura de partilha, de diálogo, de escuta e de palavra.
Tomei ainda mais consciência que a formação monástica é viva e eficaz, quando encontra numa comunidade um campo trabalhado, um campo que se deixa trabalhar para acolher a semente, deixá-la germinar, crescer e dar fruto. Ou então, para usar uma outra imagem talvez mais expressiva no âmbito da formação, se a comunidade se dispõe a ser argila bem misturada, trabalhada com a água, com justa consistência, para permitir que o oleiro lhe dê a forma bela e útil, que lhe quer dar.
Em resumo, quando uma comunidade trabalha na sua própria conversão, quando se forma como comunidade filial e fraterna, quando é, como diz São Bento, um espaço de estabilidade obediente – quer dizer de silêncio, de escuta, na conversatio morum, num caminho de conversão de comunhão, que a torna viva, então tudo contribui para a sua formação, tudo se torna para ela e para cada membro que a compõe, ocasião para crescer, para aprofundar e se dilatar na forma perfeita de Cristo, o Filho bem-amado, que o Pai quer imprimir em nós, pelo dom do Espírito. Só uma comunidade que aceita ser um campo de construção pode tornar-se uma casa, uma morada e sobretudo um templo da presença de Deus. Sem isso, mesmo os melhores cursos e sessões, com os melhores mestres e professores, não conseguem formar e fazer crescer uma comunidade e seus membros.
Conheço comunidades pequenas e frágeis que não podem mais conseguir formadores externos e qualidade, mas que são tão unidas na humildade e no desejo de conversão, que cada migalha de verdade, de beleza vinda não importa de onde, nem de quem, se torna semente de formação e de edificação. Tudo nos forma se tivermos um coração humildemente aberto para a conversão, que a conversatio monástica e comunitária nos oferece e nos pede. Isto faz comunidades aonde se percebe o coração meditativo da Virgem Maria, vigilante para nada perder do acontecimento do Verbo-Esposo. Se falta esta atitude, uma comunidade pode dispor da formação mais abundante e refinada, sem que isso a forme verdadeiramente. A melhor semente fica estéril, se em vez de cair num campo lavrado, cair no mármore mais precioso e polido.
Para que qualquer formação seja fecunda, não se deve esquecer o humus, a terra. Quem não trabalha a terra, não terá frutos no tempo desejado. E aqui está a grande sabedoria da formação monástica: começa por baixo, para que mesmo que vem do alto, como a Palavra de Deus e o seu Espírito, possam achar acolhimento, abertura, quer dizer uma liberdade que pede e deseja, e que abre a porta quando o Verbo bate.
São Bento entendeu, na escola do Evangelho e dos Padres, que nada trabalha a terra melhor que a vida comunitária. Viver em comunidade torna a conversão verdadeiramente formadora. Sem um meio comunitário, que guia, cede-se à tentação, velha como o pecado original, de querer modelar-se com as próprias mãos. Mas as nossas mãos só fazem maquiagem, fazendo-nos olhar narcisisticamente ao espelho de nossas ambições e vaidades. Quando, pelo contrário, a nossa liberdade consente que a vida comunitária e a obediência nos trabalhem, para nos formar segundo o desígnio de Deus, então, lentamente, descobrimo-nos modelados, a partir do mais profundo de nós mesmos, para que o dom verdadeiro da nossa vida dê fruto.
Neste sentido, este tempo de pandemia é uma grande provacação para as comunidades monásticas. Por um lado, descobrimos, como toda a gente, os meios de formação partilhada à distância, que oferecem às comunidades mais frágeis novas oportunidades de formação. Mas esta oportunidade revela também um grande limite: favorece a comunicação formadora, mas não a comunhão formadora. A formação on line é excelente para nos informar, mas não consegue nos modelar. É como se aprendêssemos a teoria da olaria, mas sem sujar as mãos na argila. Mais ainda: é como se um oleiro mostrasse à argila os gestos que a modelam, mas sem a tocar. É preciso, então, que a argila encontre mãos que se encarreguem de a trabalhar. E aqui voltamos à necessidade de uma verdadeira conversatio comunitária, que aliás, se tornou particularmente sensível, quando o confinamento obrigou as comunidades monásticas a viverem numa verdadeira clausura.

Quando em 2020 fomos obrigados a fechar o Curso de Formação Monástica, que existia há 20 anos, durante um mês, na Casa generalícia cisterciense em Roma, nos perguntamos se não seria necessário substituí-lo por cursos on line. Mas à parte a dificuldade prática de reunir virtualmente alunos espalhados desde a Ásia às Américas, foi evidente, para nós, que não podíamos reduzir este curso de formação a simples aulas. Faltaria a dimensão comunitária que permite aos professores começar logo a fazer germinar na vida real dos participantes, ensinando-lhes a dinâmica integral da formação monástica, que não é somente semente, mas também terra que acolhe, que não é só palavra, mas também coração que escuta para viver em comunhão.
Quando se medita o primeiro capítulo da Regra de São Bento, sobre os diversos gêneros de monges, percebemos que a verdadeira diferença entre os dois bons modelos de monges, os cenobitas e os anacoretas, e os dois maus modelos, os sarabaítas e os giróvagos, está na escolha, ou na rejeição de se deixar formar por alguém, que não sou eu. Os cenobitas e os anacoretas confiam o desejo de plenitude de vida e de santidade nas mãos de Deus e de uma comunidade guiada por uma Regra e um abade; os sarabaítas e os giróvagos seguem a tendência individualista, que temos desde o pecado original, de não confiar a formação às mãos de um outro. Todos são barro destinado a ter uma bela e útil forma, mas os primeiros permitem que Deus e a comunidade os modelem, enquanto que os outros se deixam levar, tomando a forma, sem forma, da inclinação em que escorregam. Os primeiros confiam o seu desejo de vida e de alegria a um caminho que o realiza; os outros confundem o desejo profundo do coração com a tendência dos instintos e deixam-se guiar pelas próprias tendências, que não levam a lado nenhum. Pois a tendência dos instintos é um desejo deteriorado, que se fecha sobre si mesmo, renunciando ao infinito para o qual deveria estar tendido.
A formação monástica, como toda a formação humana e cristã, é um assunto sério, seu objetivo não é a perfeição do saber, incluindo o saber como fazer, mas a plenitude da vida, para a qual fomos criados pelo Pai, resgatados pelo Filho e animados pelo Espírito; plenitude para a qual nos é dado o Corpo do Cristo, que é a Igreja, até à pertença imediata à comunidade, que nos foi dada, para que a forma de Jesus se torne a substância da nossa vida em todas as suas relações.
O Instituto Monástico Beneditino (BMI)
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Padre Peter Eghwrudjakpor, osb
Prior de Ewu Ishan (Nigéria)
O Instituto Monástico Beneditino (BMI)
BECAN (Benedictine and Cistercian Association of Nigeria)
Depois de muitos anos de preparação e de planejamento, finalmente lançamos um programa de estudos e de formação para os monges e monjas dos mosteiros da Nigéria. Os cursos começaram em agosto de 2018. Duraram quatro semanas durante este primeiro ano experimental. No segundo ano, 2019, duraram oito semanas e com a graça de Deus esperamos atingir dez semanas, no futuro. Assim, esta primeira fase foi de três períodos durante três anos.
Depois de ter consultado a universidade católica da Nigéria (Madonna University) que aceitou nosso pedido de afiliação, foi decidido que o próximo programa vai durar dois anos, em vez de três, como atualmente.
A universidade dará, igualmente, aos estudantes um certificado reconhecido. Cada ano os estudantes, depois de terem passado dois meses de estudos e exames, voltarão às suas comunidades, e depois voltarão no ano seguinte para os outros módulos, o que fará quatro meses no total.
Este programa de dois anos começará em 2021, com o próximo grupo, depois que os atuais estudantes tenham terminado o ciclo em outubro 2020.
Lista dos cursos:
1- Iniciação à gramática inglesa.
2- Espiritualidade monástica.
3- Introdução à Escritura.
4- Os Pais do monaquismo.
5- A espiritualidade da Regra de São Bento.
6- História do monaquismo.
7- Os Padres da Igreja.
8- Iniciação à Filosofia.
9- Latim.
10- História da Igreja
11- Liturgia.
12- Metodologia da pesquisa e da redação de documentos.
13- A doutrina da Igreja; os dogmas.
14- Direito canônico para os religiosos.
15- Os votos.
16- A sexualidade humana.
17- A oração.
18- Teologia moral.
19- Os sacramentos.
20- O monaquismo na África.
21- Música.
22- O monaquismo na Terra Santa.
23- Iniciação à Lógica.
24- A filosofia africana.
25- Iniciação à epistemologia.
26- Metafísica.
27- O monaquismo sírio e bizantino.
28- A vida consagrada.
29- Iniciação à informática.
30- O desenvolvimento humano.
Começamos a primeira série do curso com 24 estudantes dos 17 mosteiros da nossa região BECAN, 14 professores e três não professores; todos monges, ou monjas, da Nigéria.
A equipe organizadora é composta de 5 membros. Três ficam com os estudantes durante todo o tempo do curso, e dois, representantes dos superiores monásticos fazem a ligação entre o responsável de BECAN e os superiores, e supervisionam o programa.
A nossa esperança é abrir estes cursos para monges e monjas vindos de outras comunidades e de outras regiões da África, que possam se comunicar em inglês. Isto garantirá a continuidade a longo prazo do nosso programa.
Financiamento
Por enquanto cada mosteiro contribui com uma certa soma por estudante; dá também produtos alimentares, ou outras coisas: isto permite assegurar a alimentação e o bem-estar de todos os participantes (estudantes e pessoal). Neste campo as comunidades de BECAN deram provas de grande generosidade. Ninguém teve falta de nada. Os professores não recebem nada, mas são reembolsados no gasto do transporte, nas passagens.
A AIM-EUA deu-nos um maravilhoso presente: três caixas de livros chegaram recentemente. É uma das formas da AIM ajudar o nosso programa. Estamos constituindo progressivamente uma biblioteca: todas as doações de livros são bem-vindas.

A formação “Ananias”
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Irmã Marie Ricard, osb
Comunidade de Martigné-Briand, França
A formação “Ananias”
Desde 2014 que existe um programa de formação de formadores monásticos para os países de língua francesa. As sessões acontecem de dois em dois anos na França e na Bélgica.
O espírito “Ananias” define-se como uma grande mergulho espiritual, centrado na Palavra de Deus e vivido em corpo fraterno, tal é a proposta oferecida aos monges e monjas já experientes no seu caminho comunitário.
Quem participa? As sessões dirigem-se aos mosteiros beneditinos e cistercienses de língua francesa, de todos os continentes. As inscrições são para monges e monjas que já têm formação monástica e uma certa experiência comunitária, irmãos e irmãs com capacidades para assumir uma tarefa de responsabilidade.
Duração: três meses
Número de participantes: entre 20 e 25. O equilíbrio monges/monjas é importante, mas a realidade nem sempre obecede a este princípio.
Conteúdo: Vários
- Vida monástica e Evangelho (o discípulo do Cristo vive com a Palavra).
- São Bento.
- O saltério.
- História do monaquismo.
- Acompanhamento espiritual.
- Vida comunitária.
- Desenvolvimento humano. Psicologia e vida espiritual, etc.
- A Liturgia, experiência monástica.
A formação não tem, evidentemente, nenhum objetivo universitário! O principal é abrir portas. Pode-se dizer tudo, dar tudo, mas trata-se de formar a pessoa para enfrentar seu papel de formadora, ou de transmissora, dando-lhe os instrumentos de pesquisa. O essencial da formação é a transmissão da vida.
Como? A vida e o desenvolvimento das sessões:
- Os participantes são chamados a criar entre eles uma verdadeira fraternidade durante os 3 meses de vida comum: é a base necessária para tudo o que vai ser vivido. As sessões são práticas de vida, e não somente de informação.
- Os dois, ou três primeiros dias são consagrados a encontros, partilhas sobre a caminhada de cada um, sob a orientação de um moderador. Cada um é também convidado a dizer o que espera do encontro, suas questões e observações.
- Os participantes são acolhidos em diferentes mosteiros. Em 2018 foram estes os mosteiros que acolheram: La-Pierre-qui-Vire, La Coudre (Laval), Martigné-Briand e Bellefontaine.
- Estão previstas peregrinações, excursões.
- Um “ancião” (ir. Cyprien do Mosteiro La-Pierre-qui-Vire) acompanha o grupo ao longo dos três meses. Presença discreta, mas “fundamental para fazer a unidade do grupo”.
- Também a participação do pastor Pierre-Yves Brandt, professor de psicologia religiosa da universidade de Lausanne, excelente conhecedor e amigo da vida monástica, foi considerado indispensável; três vezes vem encontrar o grupo durante alguns dias.
- Os professores são todos monges e monjas; há também alguns professores leigos, ou profissionais de esta ou aquela matéria.
O percurso quer oferecer cursos, mas também grupos de reflexão, uma inteligência global da nossa vida monástica. Quer ajudar a assumir melhor responsabilidades de formação, ou outras em relação aos irmãos/as, ou a pessoas de fora. Desde a última sessão colocamos um acento especial no acompanhamento pessoal dado a cada participante.
As etapas passam-se em quatro mosteiros; como já é hábito, começa-se no mosteiro La-Pierre-qui-Vire. Cada etapa desenvolve um aspecto fundamental:
- A Palavra de Deus, base das nossas vidas. No centro: o mistério pascal.
- Transmitir a Tradição. É o tempo de retomar a Regra e grandes valores fundamentais: autoridade-obediência; desapropriação e economia; acompanhamento espiritual.
- Afetividade e celibato. Uma etapa mais pessoal que pode ir ao encontro do que cada um tem no mais profundo de si, nas suas forças e suas fragilidades.
- Vida comum. A Igreja-Fraternidade; inculturação; vida fraterna. Votos. Inserimos um outro tema tendo em conta a dimensão da ecologia integral.
- Assinalamos também as saídas propostas em cada etapa.
É importante que cada inscrição seja acompanhada por uma motivação clara, tanto da parte do superior/a, como da parte do irmão, ou da irmã inscrito/a. Uma carta pessoal do superior/a deve acompanhar a inscrição definitiva. Cada irmão, ou irmã junto com a inscrição deve enviar uma carta em que diz o que espera destes três meses.
Os três meses formam um todo, quer dizer que não se pode escolher participar disto, ou não. Sendo que a proposta é um percurso de formação, é global: trata-se de se formar, e não de adquirir conhecimentos, ou um método. Isto supõe que cada um se empenhe pessoalmente, durante os 3 meses e com um grupo estável.
Saber francês é uma exigência, e sempre insistimos nisto. A experiência mostrou que o irmão, ou a irmã só pode tirar verdadeiramente proveito destes três meses, se dominar suficientemente a língua, mesmo que isto leve a precisar de um investimento suplementar.

A Sessão de 2018
A última sessão aconteceu de 6 de setembro a 28 de novembro de 2018, com 19 monjas e 7 monges. O grupo foi acompanhado pelo irmão Cyprien do mosteiro La-Pierre-qui-Vire, que escutou cada um e velou pela organização. Ele estará presente na próxima sessão... que esperamos possa vir a acontecer.
O grupo teve uma forte presença africana: 16 participantes vinham de algum país da África. Nove vinham da França (mas 4 não eram de origem francesa, e entre elas duas eram Africanas). O único monge francês vinha de Latroun, em Israel.
O intercultural não foi uma teoria. O balanço final sublinhou que as descobertas mútuas foram enriquecedoras, sem ignorar as inevitáveis dificuldades, incompreensões vindas de toda a vida comum, sobretudo quando os contextos culturais são diferentes. A força do grupo foi seu espírito fraterno, que se manifestou desde o primeiro dia. Com a certeza de poder construir sobre esta pedra, os irmãos e as irmãs não hesitaram em falar entre si com verdade, quando as tensões podiam estragar a fraternidade. Este aspecto nos impressionou e queremos pô-lo em relevo.
Como podem imaginar, a dança, o canto e o ritmo não faltaram, e coloriram estes meses. Também os mosteiros que acolheram os membros souberam integrar isto nas celebrações litúrgicas.
Para o conteúdo, mantivemos o que foi vivido nas duas sessões anteriores, acentuando o acompanhamento pessoal.
Assinalemos também as saídas, uma por etapa:
- Taizé, com a possibilidade de passar dois dias, junto com os jovens, e tão fraternalmente acolhidos pelos irmãos. Uma parada em Cluny permitiu um olhar sobre a história monástica na Fran ça.
- O mosteiro ortodoxo São Silouane, na Sarthe, onde os irmãos e as irmãs participaram na liturgia eucarística, e sentiram o sofrimento da divisão dos cristãos, pois que não podemos comungar juntos. Mas o acolhimento foi muito fraterno e alegre.
- Ligugé, o mosteiro de São Martinho, a abadia mais antiga conhecida da Gália, fundada no séc. IV por São Martinho. Na volta passamos pela abadia da Santa Cruz, próxima, que tem uma relíquia da verdadeira cruz. Podemos venerá-la antes das vésperas.
- Candes, aonde morreu São Martinho, depois a abadia Fontevrault, que se tornou um centro cultural. Mais uma bela etapa do monaquismo a descobrir.
A sessão de 2021
No começo de 2020 começamos a preparar a sessão de 2021. Por causa do contexto sanitário difícil de prever, pareceu-nos mais prudente adiar para o ano seguinte. A próxima sessão acontecerá de 7 de setembro a 1 de dezembro 2022.
A formação monástica no Vietnã
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Irmã Maria Lúcia, Ocist
Mosteiro de Vinh Phuoc (Vietname)
A formação monástica no Vietnã
Existe no Vietã uma grande vitalidade monástica. São vinte e um mosteiros, dos quais dois mosteiros de beneditinas da congregação de Vanves, seis de beneditinos de Subiaco-Monte Cassino, três de cistercienses da Sagrada Família e nove de cisterciences, bem como um mosteiro de Bernardinas; são seis mosteiros femininos e quinze masculinos, sem contar as casas dependentes ou as fundações em preparação...
A cada dois anos, é organizado em comum um encontro de formação de três dias para os beneditinos e cistercienses vietnamitas constando no estudo de um documento da Santa Sé concernindo a vida monástica ou a vida consagrada em geral.
A formação inicial fica obviamente a cargo de cada mosteiro tanto para os beneditinos como para os cisterciences. Têm lugar regularmente sessões para os formadores.
A Província vietnamita da congregação de Subiaco-Monte Cassino organiza uma formação permanente. Cada ano, a Província tem uma sessão de uma semana sobre temas espirituais ou monásticos.
A formação filosófica e teológica faz-se no mosteiro ou no grande seminário ou num studium (franciscano, salesiano, ...).
A congregação da Santa Família tem localmente uma comissão de formação que se reúne regularmente e acompanha as iniciativas neste domínio. Para a Congregação, há encontros internoviciados de dois ou três dias a cada dois anos, para os monges e para as irmãs, em separado. Há também encontros entre professos temporários. Há igualmente sessões para os professos perpétuos de todos os mosteiros da Congregação. A Congregação possui também um studium para os estudos de filosofia e de teologia para os monges.
Em 1992, pela primeira vez, os cursos de teologia para as religiosas puderam ser organizados na cidade de Hô-Chi-Minh graças aos esforços de Msr Paul Nguyen van Bình (arquidiocese da cidade de Hô-Chi-Minh). As irmãs estudantes das três comunidades cisterciences (Vinh Phuoc, Phuoc Thien e Phuoc Hai) habitam numa casa na cidade de Hô-Chi-Minh, arranjada em 2007 com a ajuda da AIM. Este ano estudam vinte e quatro irmãs: quinze no terceiro ano de teologia e nove no segundo ano. O lugar é também utilizado para sessões abertas a diversas congregações religiosas. Durante o ano, a casa é ocupada por uma quinzena de irmãs professas perpétuas cistercienses. A casa serve também como porto de fixação para as irmãs com assuntos a tratar na cidade. Pode-se observar que são igualmente organizados para os professos perpétuos. Enfim, há sessões na congregação da Sagrada Família para diferentes categorias de pessoas, com responsabilidades ou não: hospedeiros, hospedeiras, dispenseiros, professos idosos, professos de idade madura, ou jovens professos com menos de 40 anos.

A formação monástica na Tanzânia
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Irmão Pius Boa, osb
Abadia de Ndanda (Tanzânia)
A formação monástica na Tanzânia
Há quatro abadias beneditinas da congregação de Santa Otília na Tanzânia: Peramiho, Ndanda, Hanga e Mvimwa. Esta breve contribuição apresenta a formação monástica recebida nestas comunidades.
Para a formação inicial durante o tempo em que os recém chegados são aspirantes ou postulantes, não há programa para reunir todos os candidatos.
Concernindo o noviciado e o juniorado (após a profissão temporária), há um programa dirigido a todos os monges que consiste num seminário de trabalho organizado pela União Beneditina da Tanzânia (Benedictine Union of Tanzania, BUT). Os noviços recebem também a possibilidade de participar num seminário em comum, uma vez por ano.
Os jovens que fizeram a sua primeira profissão e especialmente aqueles que se preparam para os votos definitivos fazem uma formação em comum durante um mês. São instruídos com temáticas dadas por diferentes professores em torno da regra de São Bento, a espiritualidade, a Bíblia sagrada, os recursos humanos para o desenvolvimento da pessoa, e gestão.
Há também uma sessão de uma semana para os monges idosos (padres e irmãos) organizada pelo centro espiritual de Ndanda (Zacheo) todos os anos.
Os formadores têm na maior parte seguido o programa dos formadores monásticos em inglês em Roma (Monastic Formator’s Programme – MFP). Alguns dentre eles seguiram o curso de espiritualidade monástica em Santo Anselmo, Roma.
Nos últimos anos, muitos abades, priores ou administradores seguiram o curso de Leadership em Roma.
As sessões de formação no mosteiro de Mvanda (RDC)
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Madre Anna Chiara Meli, ocso
Prioresa de Mvanda (RDC)
As sessões de formação
no mosteiro de Mvanda (RDC)
O mosteiro Nossa Senhora de Mvanda foi fundado pela Estrela Nossa Senhora (Parakou, Benim) em 1991. Desde o ano 2000, a abadia de Vitorchiano enviou cinco irmãs para assumir a responsabilidade do desenvolvimento desta comunidade. Mvanda foi erigido como priorado simples em 15 de fevereiro de 2010.
Há alguns anos, fez-se sentir em Kikwit a necessidade de oferecer a jovens candidatos à vida monástica ou religiosa apostólica a possibilidade de um ano de nivelamento e de pré-formação. Com efeito, os formadores de diferentes comunidades confrontam-se cada vez mais com o problema de falta de fundamentos sólidos, ao mesmo tempo do ponto de vista intelectual e da estrutura pessoal dos candidatos. Assim, as pessoas envolvidas na formação veem-se constrangidas a focar-se sobre aspectos que deveriam ser adquiridos primeiro, como o conhecimento do francês, um mínimo de conhecimento de si, uma formação catequética de base, etc., em vez de se concentrar sobre a formação puramente monástica. O que desencoraja vivamente muitos deles. E do lado das pessoas em formação, é real o risco de crescer com lacunas humanas e espirituais que serão acumuladas artificialmente pela acumulação de um saber assentado sobre bases que à primeira crise pode sucumbir.
O projeto, trazido pelas monjas trapistas de Mvanda, tomou uma forma concreta ao longo do mês de março de 2014.
Desde 2014 começaram os trabalhos de construção do centro destinado a acolher as atividades. A 19 de março de 2014, uma primeira reunião de concertação teve lugar na presença de dom Jean-Pierre Longeat, osb, presidente da AIM, a madre Anna Chiara, ocso (Mvanda), a irmã Patrizia, ocso, a irmã Catherine-Noël e o irmão Benoît (Tiberíades).
A escola é aberta aos jovens que vivem pelo menos um ano em comunidade enquanto aspirantes ou postulantes. O primeiro ano de estudos começou a 15 de setembro de 2014 e terminou a 19 de junho de 2015.
O tempo de formação ocorre de manhã, de segunda a sexta-feira. É elaborado um programa de três trimestres com uma progressão personalizada:
- primeiro trimestre: «A história e a minha história»;
- segundo trimestre: «Conhecer-me para me construir»;
- terceiro trimestre: «Entrar em aliança com a Bíblia».
Têm também lugar aulas de geografia, biologia, história, francês, etc.
Desde há alguns anos, o priorado de Mvanda organiza também sessões para os postulantes e noviços das congregações religiosas da região, entre os quais os mosteiros.
Nzonkanda ya lutondo : escola de caridade
Este projeto de criar uma escola de formação para religiosos nasceu de uma necessidade aí sentida de propor aos jovens monges e monjas um programa de formação mais especificamente orientado para a finalidade da sua vocação contemplativa.
Todavia, abrindo-o às outras congregações prontas a enviar alguns jovens, esperamos corresponder aos apelos formulados no belo documento da CIVCSVA sobre «A dimensão contemplativa da vida consagrada», e dar assim aos jovens religiosos e religiosas apostólicos uma base sólida para a sua missão. É claro que nos inspiramos na experiência feita na Bélgica e na França com o Instituto Teológico Inter-Monástico (ITIM) e o Studium teológico Inter-Mosteiros (STIM). Entretanto, tentamos adaptar os programas e o nível dos cursos à realidade e ao ritmo africanos.
Não queremos oferecer aos nossos jovens uma formação de tipo universitário. Para isso existem as universidades! Se também não podemos formar santos porque há aí uma obra divina, queremos pelo menos que os nossos religiosos(as) desejem sê-lo. Que através de uma formação humana e teológica equilibradas, eles possam profundamente tornar-se apaixonados de Cristo e da sua Igreja. A nossa aproximação pretende permitir aos nossos jovens «gostar e ver o quanto o Senhor é bom». Uma aproximação rigorosa enraizada na Escritura e na Tradição, preocupada inteligentemente com a transmissão do ensinamento da Igreja. Não se deve simplesmente fazer repetir mas assimilar para «com-preender» (levar consigo) e «co-nhecer» (renascer com), fazer a experiência íntima da beleza de Deus e da sua Igreja.
Os formadores esforçam-se por transmitir tanto um método de trabalho quanto um conhecimento. Exige-se deles que disponibilizem aos estudantes uma cópia das suas aulas e uma bibliografia atualizada tanto quanto possível. O percurso durante estes dois primeiros ciclos (sobretudo o primeiro) é, tanto quanto se possa, baseado nas Sagradas Escrituras, o Catecismo da Igreja Católica, o Concílio Vaticano II e as recentes encíclicas pontificais. Com efeito, propomos dois ciclos. O primeiro dirige-se aos jovens aspirantes, postulantes e noviços/as, mas também a jovens professos e professas. O segundo é destinado aos professos e professas simples ou perpétuos. O futuro demonstrará se é possível um terceiro ciclo.

Que vos impede de se tornarem «obsoletos»?
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Padre Chad Boulton, osb
Abadia de Ampleforth (Reino Unido)
Que vos impede de se tornarem «obsoletos»?
Uma resposta da congregação beneditina inglesa ao desafio da formação contínua
Em caso de pandemia, o horizonte pode desvirtuar-se com o passar dos dias. Na vida monástica pode tornar-se cada vez mais importante precisar uma perspectiva mais larga e a longo prazo. Que significa pertencer a uma Congregação? Não somente aderir ao que está expresso nas Constituições mas também a um estado de espírito favorável para o mútuo sustento; não somente o aspecto formal de uma visita canônica mas o dinamismo dos laços fraternos entre as casas. Que significa crescer ao longo de toda uma vida monástica? Não somente integrar as exigências da formação inicial, mas também a necessidade de um desenvolvimento contínuo, individual mas também coletivo.
Estas duas questões centrais foram abordadas quando no Capítulo geral da congregação beneditina inglesa foi estabelecida uma Comissão de formação contínua em 2017, a fim de «sustentar as nossas comunidades no discernimento dos meios necessários para o desenvolvimento da formação contínua». Eles sublinharam «a importância da colaboração entre os mosteiros, [...] crendo que isto é importante para o seu bem-estar e mesmo para a sua sobrevivência».
Antes disto neste mesmo ano de 2017, a Congregação para os religiosos (CIVCSVA) havia publicado um documento intitulado: «Vinho novo, odres novos» que contribuiu para modelar esta Comissão. Existe o risco de se falar muito de formação contínua mas que muito pouco seja realmente feito.
«Não basta organizar cursos teóricos sobre a teologia e abordar temas de espiritualidade; é urgente que desenvolvamos uma cultura de formação permanente... para rever e verificar a experiência real vivida no seio das nossas comunidades.»
O Capítulo geral procurava apoiar-se sobre o trabalho efetuado pelo Forum 2015, que reuniu os jovens membros da Congregação, para congregar as suas ideias e propostas sobre a renovação monástica na congregação beneditina inglesa, em particular sobre os temas da «comunidade» e da «formação». Os seus documentos foram apresentados no Capítulo geral extraordinário que se seguiu imediatamente ao Capítulo decorrente. Estes mesmos documentos foram de seguida discutidos em cada mosteiro. O Capítulo de 2017 trazia igualmente a sua própria reflexão sobre o ministério abacial e desejava um trabalho mais aprofundado sobre a natureza do leadership na Congregação.
Tratava-se de um novo tipo de Comissão[1] à qual era pedido não uma produção de documentos, mas o envolvimento dos mosteiros no processo de desenvolvimento de uma cultura da formação, pondo o acento num alargamento do sentido da vitalidade espiritual que não pode consistir simplesmente numa atualização teológica ou numa formação profissional. Uma tão vasta tarefa exigia uma certa flexibilidade no método. Foram escolhidos seis participantes durante o Capítulo a fim de garantir a amplitude e a experiência necessárias.
Desde o começo, decidimos reunir-nos regularmente, numa casa da Congregação diferente de cada vez. Estes encontros permitiram-nos, enquanto Comissão, desenvolver o nosso próprio contributo e a confiança mútua. Começamos sempre por estudar profundamente todos os aspectos do que se passava na nossa vida individual ou comunitária. Para nossa grande surpresa e alegria, constatamos que nos entendíamos bem e que apreciávamos realmente os momentos passados juntos. Cada um contribuiu com o seu parecer e a sua experiência, seja no exercício de funções oficiais como presidente, secretário, tesoureiro ou em papeis informais mais essenciais de «consciência», de «sábio», de «escrivão».
Estas reuniões permitiram-nos igualmente encontrar com a comunidade que visitavamos, rezar, partilhar as refeições, discutir com ela, compreender o ponto de vista dos seus membros sobre a formação. É encorajador constatar que estas sessões atraiam uma grande número de participantes e dá uma percepção fascinante dos diferentes mosteiros. Começávamos geralmente com a questão: «Que nos impede de nos tornarmos “obsoletos”?», o que rapidamente dava lugar a respostas sobre a formação individual e comunitária. Temos uma ideia das comunidades cujos monges ou monjas tinham o hábito de se encontrar e daquelas para as quais estes encontros eram momentos cheios de reticência e de tensão.
Uma parte da nossa tarefa consistia em organizar duas conferências por ano para esta Comissão, como «momentos fortes» no processo de desenvolvimento de uma cultura da formação. A primeira teve lugar em 2018. Após numerosas discussões sobre o leadership, escolhemos o tema: «Tomar a responsabilidade da própria comunidade», convidando não os superiores mas uma amostra alargada de quatro membros de cada casa, em particular as que não participam habitualmente nos acontecimentos da Congregação.
Fomos grandemente ajudados pelo apoio e os encorajamentos do Abade Presidente, e por uma consultadora externa, Caryn Vanstone, que já tinha trabalhado com mosteiros. Trouxe frescura e rigor às nossas discussões e permitiu-nos conseguir uma clareza e uma coerência que de outro modo não seria possível. Insistiu particularmente sobre a necessidade de considerar esta conferência como fazendo parte de um processo global, implicando ao mesmo tempo a preparação e o que se seguiu. Uma das ferramentas que se demonstrou notavelmente útil foi a arte do «questionário apreciativo». Isto inverteu a dinâmica monástica habitual que consiste em concentrar-se sobre os problemas: ela convidava os participantes da conferência a começar pelo que ia bem e como se desenvolver a partir daí. Esta aproximação foi encorajada ao mesmo tempo interrogando as comunidades antes da conferência e partilhando a sua contribuição durante a conferência.
O acontecimento em si foi generosamente acolhido pela abadia de Buckfast , e grandemente facilitado por Caryn e seu marido Bruno. Houve algumas discussões formais, mas o acento foi posto sobre o envolvimento dos delegados, agrupados em grupos, com uma progressão de quatro dias, estimulando as contribuições, deixando depois o tempo dar sentido e fazer o ponto da situação, a fim de ser construído um plano de ação. Um elemento central do conjunto da reunião era a questão herdada dos abusos sexuais sobre crianças com o qual a Congregação foi confrontada pela abordagem do inquérito público IICSA (Independent Inquiry into Child Sexual Abuse). Os participantes deram ao mesmo tempo prova de honestidade e de humildade na planificação das partilhas no interior das comunidades. Os resultados foram apresentados aos superiores que assistiram à última jornada. Após a conferência, as comunidades foram convidadas a selecionar um dos seus delegados para um programa de formação cuja organização foi facilitada por Caryn e incluiu a congregação de Santa Otília.
A segunda conferência para 2020 devia concentrar-se sobre os superiores, mas também implicar aqueles que as comunidades haviam eleito como delegados para o próximo Capítulo geral. O objetivo era duplo: dotar os superiores de «ferramentas fáceis» de leadership e desenvolver um novo modo de se reunir enquanto Congregação que pudesse depois influenciar o processo do Capítulo geral. Entretanto, todas as nossas discussões e todos os nossos planos foram abandonados pelas restrições da COVID e tivemos que repensar tudo isso. Forçados a nos reunirmos «on line», continuamos a nos encontrar todos os quinze dias e decidimos finalmente oferecer uma série de webinários a toda a Congregação, com uma exposição de vinte minutos seguida de quarenta minutos de questões e comentários. Havia uma variedade de participantes, monásticos, religiosos, leigos, mas todos abordando aspectos diferentes da crise pandêmica. Estes tiveram muito sucesso e permitiram às diferentes casas ver-se e compreender-se, ainda que sob a forma de janelas de um ecrã Zoom. Vimos igualmente de começar reuniões mensais em linha para aqueles que devem ir ao Capítulo geral, os superiores, os delegados e os oficiais, em pequenos grupos. Esperamos que isto permita aos capitulares compreenderem-se melhor e colaborarem mais estreitamente uns com os outros a fim de permitir um Capítulo geral mais frutuoso.
Os doze últimos meses foram particularmente difíceis, mas os quatro anos do nosso mandato não foram menos exigentes. O nosso trabalho foi acrescido aos nossos compromissos já existentes, que em si mudaram ao longo deste período, pois alguns tomaram novas funções, como as de superior, oficiais, de prior. Nesta fase final, refletimos agora sobre a maneira de transmitir o nosso trabalho. Refletindo sobre tudo isto, gostaria de propor algumas conclusões gerais.
A abertura ao Espírito
Esta comissão nunca foi simples. Houve numerosos momentos de frustração onde devíamos dar prova de paciência, porque a compreensão da nossa tarefa evoluiu. No meio de todas estas flutuações e de toda a nossa atividade, deviamos confiar no Espírito e não apreender as coisas de maneira demasiado rápida com uma luz prematura, precedendo ou impedindo o debate e a troca necessários. Circunstâncias em mudança, como a da COVID, puseram à prova esta abertura à mudança, enquanto procurávamos como nos adaptar e modificar os nossos projetos mais desejados.
Modelando a mensagem
Esta tarefa foi formadora para nós, e nós próprios fizemos a experiência do tipo de «fertilização cruzada» que procuramos encorajar na Congregação. Há uma verdadeira comunhão em construção, um sentimento de que o todo é mais do que a soma das partes. A importância de aproveitar as nossas reuniões, o investimento humano na constituição do grupo foram contrabalançados por uma sã responsabilidade da garantia da honestidade de cada um.
Enraizamento da tarefa
As nossas visitas a cada comunidade foram essenciais para nos permitir permanecer em contacto com a realidade da experiência vivida nos mosteiros. Os grupos que se reúnem demasiado separadamente puderam desenvolver a sua própria linguagem, afastando-se cada vez mais do seu primeiro contexto. Também na sua própria comunidade, cada membro era responsável por uma ou duas comunidades «de ligação», o que garantiu a conexão do conjunto da Congregação.
Coisas antigas e novas
Como o mestre da casa que tira do seu tesouro coisas antigas e novas, tentamos combinar as forças da nossa tradição monástica com as ideias da Igreja e do mundo em geral. Recomendámo-nos mutuamente conferencistas, livros e sites web. A nossa consultora externa desempenhou um papel crucial partilhando a sua experiência em sentido largo, na medida e no momento apropriados.
«Congregacionalidade»
A última reflexão provém das duas primeiras questões concernindo a finalidade de uma congregação e a natureza da formação. A nossa comissão desenvolveu a sua compreensão da formação, fazendo-nos passar do indivíduo à comunidade e enfim à Congregação. Uma das surpreendentes descobertas foi a da «congregacionalidade», vivida em nossas visitas às comunidades, à conferência de Buckfast e nos webinários. Exatamente como uma reunião de primos reunindo-se pela primeira vez para descobrir um sentido de família, descobrimos uma identidade comum graças aos laços entre as nossas diferentes casas. Isto nunca foi tão verdadeiro como durante a nossa colaboração no seio da Comissão.
[1] A Comissão é composta pelos Irmãos Chad Boulton (Ampleforth), Mark Barrett (Worth), Madre Anna Brennan (Stanbrook), pelos Irmãos Cuthbert Elliott (Saint Louis), Francis Straw (Buckfast), Brendan Thomas (Belmont).

Os estudos de teologia no mosteiro
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Testemunho
Irmã Clara Cachia, osb
Mosteiro de Martigné-Briand (França)
Os estudos de teologia no mosteiro
Não se entra no mosteiro para fazer estudos de teologia, mas para se servir de um caminho de libertação interior que nos conduzirá a nada ter de mais caro que Cristo. Entretanto, pode acontecer que as circunstâncias permitam estes estudos, e que eles sejam benéficos para a vida monástica. Este pequeno testemunho pretende ser eco disso.
Os estudos de teologia podem começar desde o noviciado, graças à aulas recebidas, às leituras pessoais que é bom poder realizar de modo aprofundado no princípio da formação monástica. Após a profissão temporária, é costume entre nós que seja reservado um ano à inserção em comunidade pelo trabalho e a vida fraterna. Entretanto, durante este ano, pude realizar um trabalho muito enriquecedor sobre Santo Ireneu, uma boa porta de entrada na teologia, em ligação com um professor da universidade católica de Angers. Em seguida pude participar do STIM, ciclo comum durante três anos, que além de um ensino de qualidade, permitiu-me viver trocas e encontros com outros jovens monges e monjas, e alguns laços tecidos nesta ocasião perduram até hoje. Depois, realizei o ciclo do Bac em parceria com o Centro Sèvres e o seu método pedagógico bem concluído. Depois pude completar o segundo ciclo de teologia na universidade católica de Angers em quatro anos através da assistência de uma única tarde de presença por semana na faculdade, até à obtenção da licenciatura canônica. Enfim, os meus estudos acabaram com a realização da tese na universidade católica de Angers, debruçada sobre o estatuto da percepção sensível nas Questões a Talassios de Máximo o Confessor. A meu ver, todos os estudos de teologia até à licenciatura canónica visam obter uma certa cultura em teologia, o que representa um grande trabalho tendo em conta a nossa tradição de pensamento cristão. Mas com o trabalho de tese, trata-se verdadeiramente de um compromisso pessoal e criador onde é possível acrescentar a sua pequena pedra ao edifício do estudo teológico, podendo assim contribuir com uma base de trabalho para outros que continuarão a tarefa. Realizei estes longos estudos em paralelo com as tarefas que me eram confiadas em comunidade, primeiro a cozinha, depois o ateliê de doces, o ateliê de cerâmica, a horta e o pomar.
Gostaria de resumir brevemente quais os contributos dos estudos de teologia para a vida monástica.
O primeiro ponto concerne à nossa tradição monástica. A Regra de São Bento aconselha partilhar o tempo que não é dedicado ao opus Dei entre a lectio divina e o trabalho manual. A lectio divina é o estudo da Bíblia e dos Padres, um estudo orante e nutriente, sendo totalmente possível encontrar este alimento da alma nos estudos de teologia desde que estes sejam abordados na sede do mistério, e não com a secreta intenção de daí retirar uma glória pessoal. Esta implicação é por outro lado também presente no trabalho manual, e São Bento não deixa de sublinhá-lo. Deve-se acrescentar que é nos mosteiros que a cultura da antiguidade tem podido ser conservada no Ocidente e sobreviver aos devires da história e aos acontecimentos políticos. Nos nossos dias, os abalos que agitam a nossa sociedade fazem dos mosteiros lugares que permitam a transmissão de uma cultura e, note-se, a das línguas antigas, cujo ensino tem sido brutalmente diminuído nestes últimos tempos.
A segunda vantagem dos estudos de teologia é o de um equilíbrio humano. A nossa natureza é feita para se desenvolver em todas as suas faculdades, e tal como o trabalho físico permite desenvolver harmoniosamente as forças do corpo, também o estudo permite exercer as forças do espírito de modo proporcional. Os estudos permitem pois encontrar um equilíbrio, se nisso tivermos gosto. Concentrar-se sobre um objetivo e aprofundá-lo é uma disciplina que permite descentrar-se dos seus problemas pessoais, abrir-se ao pensamento de outro e alargar o seu mundo interior.
Enfim, o terceiro ponto que gostaria de sublinhar é o mais importante. Os estudos de teologia podem ser um apoio necessário à própria vida monástica. Na época em que vivemos atualmente, a vida monástica submete-se ao desafio de brutais mudanças culturais. É absolutamente necessário dimensionar o porquê de termos escolhido esta vida, no que ela tem de essencial, e do que se pode transformar sem a desvirtuar. Para efetuar este discernimento, os estudos de teologia são preciosos sob diversos pontos de vista. Pela confrontação com o pensamento de cristãos apaixonadamente comprometidos com a sua fé, eles podem suscitar uma experiência de fé pessoal e intensa. Eles permitem igualmente a expressão desta experiência , porque dão a possibilidade de pôr em palavras realidades interiores, dando-lhes assim mais força, mais convicção e tornando-os comunicáveis a outros. Enfim, eles podem tornar-se um alimento para a fé e um motor para o progresso na união com Deus. Confrontar-se com um autor de modo regular e aprofundado com a perspectiva de dever prestar contas do seu trabalho obriga a entrar num arranque de pensamento bem mais consistente do que se ler livros conforme as suas inclinações pessoais. Trata-se da edificação de um tipo de construção interior capaz de resistir às tempestades e aos ventos contrários, e que permite a construção de uma personalidade intelectual, uma riqueza que é também possível transmitir à sua volta e aos que dela têm sede.
Desafios para os cristãos e para os consagrados num mundo agitado
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Abertura ao mundo
Professor Italo de Sandre
Desafios para os cristãos e para os consagrados
num mundo agitado[1]
«O Senhor disse: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo no Egito. Ouvi o seu grito diante dos seus opressores; sim, eu conheço as suas angústias”.» (Êxodo 3, 7)
1.Ver e ouvir para conhecer: os cristãos deviam saber que aí estão os primeiros passos de toda a obra de misericórdia e que, mutatis mutandis, é também o que se encontra no coração do trabalho das ciências sociais. Um primeiro problema, uma questão nem sempre resolvida na Igreja de hoje, estar verdadeiramente disponível e agindo para ver, escutar, conhecer a realidade da vida das pessoas e das sociedades, e não somente o que está bem e o que queremos que seja; e isto, sem ter medo de ser posto em questão. A observação sociológica não propõe uma ideologia da sociedade (como certos meios católicos, mesmo de primeiro plano, dizem ou deixam entender), mas procura contribuir para «ver» as coisas o melhor possível na sua complexidade, recorrendo a métodos fiáveis (repetíveis) e válidos (capazes de representar a realidade estudada) de modo transparente, submetido a um controle e às críticas. É neste espírito que, para dar um exemplo, nos anos 1990, os institutos religiosos masculinos e femininos do nordeste da Itália lançavam simultaneamente com o Observatório sócio-religioso da Conferência episcopal de Três Venécias, um «Observatório da vida consagrada», que publicou, entre outros, uma investigação sobre «Os jovens e a vida consagrada. Uma outra via», num volume coletivo. As representações que os jovens se faziam dos religiosos e dos padres eram já sem encanto, em tensão com os aspectos mais institucionais da vida dos consagrados, sobretudo dos padres («Eles têm a resposta antes que se lhe tenha posto as questões»). Mas mesmo este período de atenção e de abertura no mundo dos religiosos rapidamente é encerrado. Um outro exemplo. Recentemente, para preparar o congresso eclesial da Aquileia (nordeste de Itália), em 2012, os bispos das Três Venécias pediram ao Observatório sócio-religioso da Conferência episcopal das Três Venécias (OSReT[2]) um importante e complexo inquérito sócio-religioso, cujos resultados, muito interessantes tanto quanto as críticas, foram apresentados e discutidos de modo comprometido por numerosos responsáveis da pastoral diocesana, mas os bispos não acharam bem publicá-lo numa obra, nem o levaram em consideração nas suas conclusões finais. Muitos católicos, bispos, religiosos, leigos estimam «saberem já» e que não tem mais necessidade de outras «complicações sociológicas». Nos nossos dias, pelo contrário, um papa como o cardeal Bergoglio quis que antes e entre as sessões do sínodo sobre o casamento e a família se escutasse todas as Igrejas e todos aqueles que quisessem contribuir com o seu próprio testemunho de vida. É uma decisão inédita, importante, mais talvez como método do que pelo seu conteúdo, que corresponde aos resultados produzidos. Quem sabe quando e quem quererá retomar esta decisão e dar assim todo o seu valor à experiência de fé e de vida que é feita na consciência dos fiéis. Complexidades das experiências que não se pode descartar sem fazer violência tanto às pessoas como à inteligência da realidade. Pessoalmente, estimo que mesmo as comunidades monásticas deveriam constituir, nos seus diversos países, pequenos grupos de investigadores e de monges, de monjas (ou, mais geralmente, de religiosos e religiosas) para conhecer e compreender a sua realidade em curso de mudança.
2. Desde há algum tempo, diversos estudos demonstraram que entre mãe/pai e filhos sobrevêm um importante desmoronamento intergeracional dos valores nos quais se crê (por exemplo: a verdade dos Evangelhos, Cristo) e práticas, sobretudo no domínio moral em geral, e em particular no da afetividade-sexualidade. A imagem da Igreja era já muito problemática por causa das suas mensagens de austeridade, e não é de se duvidar que a simpatia pessoal da qual é alvo o papa Francisco seja também devida como simpatia e uma confiança generalizada para com a Igreja-instituição. A religiosidade procura vias que impliquem uma presença reduzida da Igreja («um pouco de Igreja»), mas – no momento – não «sem Igreja». Observe-se a afluência a certos santuários ou lugares de culto particulares, frequentados não somente por pessoas inativas e pouco instruídas, segundo os velhos cânones da piedade popular, mas por pessoas ativas e instruídas que procuram uma via pessoal de relação de fé-confiança em meios diversamente acolhedores.
A atitude das mulheres não difere muito mais da dos homens. E mesmo, entre as mulheres, quanto mais aumenta o nível de instrução mais aumentam as tomadas de posição críticas para com o catolicismo e a Igreja. O que implica que a transmissão tradicional da fé pelas mulheres não pode mais ser considerada como garantida. A presença ativa, mais madura e mais crítica das mulheres, consagradas e leigas, exige uma reflexão dialógica e uma implicação profunda e comum. Do mesmo modo, o sentido tradicional do «serviço» deve ser inteligentemente revisitado em toda a sua amplitude, para mulheres e homens.
3. A centralidade do sujeito como indivíduo, pelo menos no Ocidente, conduziu as pessoas a sentirem-se e a pretenderem-se autônomas face-a-face com as instituições, sociais, civis e religiosas (mas não econômicas, o mercado incitando os consumidores de mil e uma formas). As tecnologias da comunicação fizeram explodir este fenômeno. O amadurecimento das pessoas opera-se através de um percurso mais longo e incerto, favorecido por um prolongamento dos percursos escolares, e tornado menos diretivo por numerosas ocasiões e infinitas aspirações tornadas possíveis. Cada vez mais, as vocações à vida consagrada emergem elas mesmas numa idade em que a pessoa já adquiriu uma personalidade madura, menos (ou mais dificilmente) diretamente adaptável ao estilo dos institutos em que ela entra, tornando mais complexa a identificação e a organização da vida comum. A unidade da vida pessoal, mesmo para um monge ou uma monja, não é assim tão simples, nem se encontra pela observação de papeis e de gestos.
Esta autonomia da pessoa, sentida e pretendida, colocou o corpo no centro. O corpo, não mais considerado como qualquer coisa de negativo, a esconder, desvalorizado em relação ao «espírito», está pelo contrário estreitamente ligado ao espírito-razão num sentido ativo e positivo. A sociedade de consumo atrai a fazer experiências, a experimentar os cinco sentidos nas ocasiões mais variadas. Assim, não se compra mais uma coisa somente para possui-la, para utilizá-la, mas quer-se poder viver com ela uma experiência emocional, física, individual ou com outras pessoas.
Os corpos-espíritos têm uma sexualidade e papeis de gênero que são transformadas em parte (e não é justo focar tudo sobre a homossexualidade, como fizeram recentemente na Itália ideologias opostas). As desigualdades tradicionais homem-mulher não são mais aceitas, em nenhum meio de vida como em sociedade. As discussões e confrontos (mesmo certas manifestações políticas de rua), que emergem no enquadramento do debate levantado pelo recente sínodo, mostraram que mesmo no seio da hierarquia e entre os «fiéis» católicos, existem diferenças por vezes radicais na maneira de pensar, de governar, de viver o seu corpo e o seu gênero. Corpos-gêneros que concernem também os consagrados, mulheres e homens, padres e religiosos, cuja escolha de uma vida virginal, celibatária não foi tematizada pelo sínodo (ou talvez não se quis fazê-lo). Dado que, na vida concreta, eles estão em interação com leigos homens e mulheres, cuja percepção do corpo e do gênero se constrói diferentemente, isto provoca problemas na elaboração das relações e da educação na Igreja e na sociedade. Nas relações entre institutos religiosos e sociedade, entre mulheres-homens consagrados e mulheres-homens leigos, o modo como cada um se exprime como pessoa abrange dimensões não-verbais e nas quais a corporeidade é em todo o caso central, como riqueza ou fraqueza na vida, na comunicação e no estar acompanhado, na ajuda dada e/ou a necessidade de ser ajudado.
4. Em toda a sociedade, os estilos de vida (maneiras de estar, de pensar, de crer, de agir, de ser em relação) tornam-se uma realidade central, constituem um medium fundamental de comunicação verbal e não-verbal dos valores pessoais através das práticas da vida. A importância dos estilos de vida provém da personalização daquilo em que se crê e do que se pensa na vida cotidiana. É preciso ter em conta o fato de que, na realidade atual, aqueles que que se dizem católicos adotam efetivamente entre eles estilos de vida extremamente diversificados, e mesmo opostos (de fato, um bom número dos que se dizem católicos não observam nem a moral social nem a moral ensinada pela Igreja em matéria afetiva e sexual; têm opções políticas diferentes, etc.). O que torna necessários, sobretudo no domínio religioso, um olhar realista e um discernimento dialógico sério sobre a vida cotidiana, a fim de se responsabilizar mutuamente e não somente de repreender «os outros», tendo bem em conta o fato de que o declínio crescente da religiosidade da Igreja se faz acompanhar de uma busca de sentido frequentemente confusa mas bem presente, em todo o caso entre os jovens. Certos teólogos definiram de modo simplista estes jovens como: «as primeiras gerações de descrentes», «pequenos ateus» em crescimento, o que levou involuntariamente um grande número deles, mesmo entre os padres e os religiosos, a dizer que nada mais há a fazer. Esta perspectiva não ilumina suficientemente o problema da existência de uma nova espiritualidade (não necessariamente anti-religiosa) que vale a pena viver e exprimir; uma espiritualidade a estudar, a compreender e com a qual é preciso dialogar. Um grande número de pessoas já deixaram a Igreja porque ela as ignorava neste percurso.
5. Quando me recordo das reflexões que fazíamos nos anos 1990, acho atual o convite paradoxal dirigido aos intitutos religiosos femininos e masculinos, não somente de «sair», como o papa Francisco os incita a fazer, mas também e mesmo em primeiro a abrir, de um modo apropriado mas concreto, não somente os «museus», mas também as portas dos espaços da sua vida cotidiana, para que um maior número conheça os estilos de vida, humana e cristã e não somente identitária, das comunidades consagradas (o back office, e não somente o front office; o interior da casa e não somente a fachada), que elas apreciem a humanidade, a proximidade. Proximidade também nessa transparência de que devem ser testemunhas. Proximidade igualmente entre institutos religiosos, entre mosteiros, entre comunidades que deveriam partilhar antes de tudo as suas experiências e o seu testemunho de vida, tanto contemplativa como ativa. Talvez haja aí formas de cooperação desejáveis, se não necessárias. Estas eram impensáveis no passado, devido a um cuidado de salvaguardar a identidade de cada instituto, que primava pelo testemunho da escolha da vida religiosa e monástica, se não e só da vida cristã (como não pode ser de outra forma em certas sociedades).
Esta necessidade é ainda reenforçada (pelo menos no Ocidente) pela diminuição ou a extinção das vocações, pelo envelhecimento e a redução numérica de muitas comunidades, que conduzem à retroação previsível da parábola do tempo para algumas comunidades ou famílias religiosas, e em todo o caso a uma vida reduzida no seu seio.
6. A propósito da Igreja em geral, pode-se retomar por um instante o tema aflorado do «serviço». Mais uma vez as palavras e os atos do Papa – que não raro são fortemente criticados – parecem hoje orientar-nos para um serviço verídico e efetivo mais do que um reforço da autoridade: vir concretamente em ajuda aos que são fracos, pobres, marginais, aos que conhecem o sofrimento e também àqueles que saíram de um quadro de vida «regular». «A autoridade», no sentido institucional, religioso, moral, é habitualmente compreendido como uma forma legítima do poder de ordenar, de obrigar os outros a fazer o que pessoalmente a autoridade estima como justo e bom de realizar, ações comuns e estruturas que funcionem exclusivamente de cima para baixo, por meio de ordens, regras, deveres. Na realidade, uma tal forma de poder não é a única; ela tem tendência a ser rígida e a não ser submissa com pouco ou nenhum controle. De um ponto de vista sociológico, parece que se recorre naturalmente ao expediente retórico que consiste em associar a priori a um tal modelo vertical o termo de «serviço», e que pode não ser percebido como tal pelos outros. De fato, nos nossos dias, a partir de todas as observações feitas até agora, uma tal legitimação é posta em causa, evidente na esfera civil, menos gritante mas também muito presente no mundo religioso, como as investigações o demonstraram. Ora, quando a autoridade não é nem reconhecida como legítima (e não usufrui mais do consentimento-confiança) nem apreciada, o que ela faz é interpretado e eventualmente acolhido com um outro olhar. O fato de ela «servir», de realizar atos e pronunciar palavras que «servem» a vida das pessoas e das comunidades, será de fato interpretado pelas pessoas interessadas. A autoridade deve ser reconhecida com uma nova frescura, numa relação que não é mais de alto para baixo, de comando-obediência, como no passado, mas numa relação de respeito e de não-humilhação, de escuta recíproca e de diálogo sobre as necessidades e as expectativas, as possibilidades e os limites. Entre o autoritarismo e a autoridade, é atual, por exemplo, a competência que será valorizada (os leigos conhecem bem domínios tanto ou mais «competentes» que os religiosos), a empatia, a convicção de que a capacidade de trabalhar e de caminhar em conjunto é uma riqueza. O serviço deveria ser melhor reconhecível como tal, dar razão da sua própria validade, sem o vestuário da não autenticidade.
7. Tudo o que dissemos até aqui subentende uma linha vermelha, uma maneira de pensar as coisas e as pessoas que é bom qualificar de «pensamento complexo». Ao longo do século XX as ciências cultivaram um sentido metódico, sistemático da complexidade do conhecimento e da vida, e chegou-se à maturidade neste domínio essencialmente no momento em que se procurou analisar com novos instrumentos precisamente as sociedades, as pessoas, o nosso mundo e o universo como sistema. O próprio papa Francisco – mesmo que numa linguagem teológica e pastoral – exprimiu-o implicitamente à sua maneira na sua primeira exortação apostólica, onde nos dá contínuos exemplos nos seus discursos pronunciados nos Estados Unidos, na África, na sua Laudato sì, nas suas exortações pós-sinodais, nas conferências de imprensa dialogadas que dá durante as suas viagens, e cada vez mais. Falar de complexidade significa não ser redutor, simplista, e não fazer resumos, do gênero do que apenas se retem aquilo que nos convem. Isto significa saber refletir sobre as implicações de toda a ação levada a cabo. Isto quer dizer: querer mostrar como a ordem e a desordem, o bem e o mal, o justo e o injusto são imbricados entre si; que é preciso saber olhar as coisas com realismo, e designar aquilo sobre o qual é preciso exercer um discernimento para poder de seguida projetar e fazer juntos algo de melhor; que saibamos reconhecer também os limites e os conflitos a fim de construir pontes. Compreender que o todo é mais do que as partes que o constituem, mas que – quando, por exemplo, se trata de pessoas, de famílias, de sociedades – paradoxalmente o todo é ainda menos do que a soma das suas partes, porque cada pessoa e cada família vale por si mesma, para lá dos valores do grupo em que inserem. Um todo (por exemplo, uma família, uma comunidade religiosa, uma Igreja) tem o seu próprio DNA, o seu próprio «código-fonte», que está também presente em cada uma das partes do todo (tal é a concepção cristã da pessoa). A complexidade atual das experiências religiosas é o fruto – como tentamos dizer – de mutações ligadas e de um enorme alcance: a centralidade absoluta: a) do sujeito, da autonomia das escolhas que formam as pessoas; b) das inovações tecnológicas para uso dos indivíduos como massas que têm também direta e indiretamente levado; c) à inédita mobilidade de milhares e milhares de pessoas, e logo; d) à existência simultânea de uma grande pluralidade de experiências e de instituições religiosas, e sempre mais submetidas à aceitação ou à recusa da parte dos indivíduos.
Se se preferir manter uma visão redutora, ter-se-à a impressão de estar em segurança, mas inevitavelmente se se fechará; não se escutará, mas também não se será escutado.
[1] Intervenção no Capítulo Geral da Congregação Subiaco-Monte Cassino de setembro 2016. Italo de Sandre é professor de sociologia na universidade de Pádua. Ensina «sociologia e religião» na faculdade de teologia da Trivenécia e no Instituto de liturgia pastoral de Pádua. Faz parte do comitê científico do ORSeT, Observatório sócio-religioso da Trivenécia. Nos últimos anos, as suas investigações têm sido sobretudo orientadas pelos problemas fundamentais da ação social, em particular as implicações analíticas dos processos de solidariedade e de comunicação, e as transformações dos códigos simbólicos no enquadramento de um pluralismo cultural, moral e religioso crescente.
[2] OSReT: Osservatorio Socio-Reliogioso Triveneto. Centro de investigação fundado em 1989 sob forma de associação entre as dioceses das Três Venécias, e órgão da Conferência episcopal. Cf.: https://www.osret.it/it/pagina.php/100. [Nota do editor]
O mosteiro São Bento de Volmoed
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Uma página de história
Irmão Daniel Ludik, Order of Holy Cross (OHC)
Priorado São Bento, Volmoed (África do Sul)
O mosteiro São Bento de Volmoed,
o ecumenismo em ação
Em 30 de agosto de 2019, três irmãos da Ordem da Santa Cruz, uma ordem beneditina anglicana, chegaram ao centro de retiro Volmoed perto de Hermanus, na província do promontório ocidental na África do Sul, após terem deixado o seu mosteiro perto de Makhanda (Grahamstown) na província do promontório oriental, com um caminhão cheio de bíblias, breviários, livros, ícones, estátuas, móveis e um cão.
Uma breve história da ordem da Santa Cruz
A Ordem da Santa Cruz (OHC) foi fundada pelo padre James Otis Sargent Huntington em 1884 em Nova Iorque, como uma ordem de padres missionários que trabalhavam principalmente pela justiça social em favor dos migrantes desfavorecidos. A OHC rapidamente se concentrou na educação, notavelmente fundando escolas para as crianças pobres. Na América, a OHC fundou a escola S. Andrews em Sewanee, Tennessee, e a escola Kent em Kent, Connecticut. A OHC instalou-se igualmente na África desde o princípio do século XX, com uma fundação em Bolahun, na Libéria, onde a ordem criou a escola S. Mary. Este mosteiro teve infelizmente que fechar nos anos 1980 devido à guerra civil que assolou o país.
Desejosos de prosseguir com a sua presença na África, e a convite do arcebispo emérito Desmond Tutu, a OHC fundou o mosteiro Mariya uMama weThemba perto de Grahamstown na África do Sul em 1998. A comunidade monástica rapidamente lançou um programa paraescolar e um fundo de bolsas de estudo para as crianças dos trabalhadores agrícolas nos arredores do mosteiro. Entretanto, um dos maiores problemas identificados na educação na África do Sul é uma deficiente atenção aos estudos de base. Decidimos lançar uma escola primária que se encarregaria dos níveis R a 3 (para as crianças dos 5 aos 8 anos). Assim a escola Holy Cross começou em 2010.
A filiação beneditina
Com o tempo, e à medida que mudava a sociedade, a OHC tornou-se mais beneditina no seu espírito e no seu carisma. Com o encorajamento dos camaldulenses americanos, em relação de aliança com a OHC, esta tornou-se oficialmente beneditina quando do seu capítulo anual em 1984, cem anos após a sua fundação.
Enquanto beneditinos, fomos convidados a unirmo-nos à BECOSA (Benedictine Communities of Southern Africa) pouco após a nossa chegada à África do Sul. Este foi um recurso muito precioso para nós enquanto comunidade. É mal conhecida a existência de mosteiros na Igreja anglicana, pelo qual é muito importante e útil para nós fazer parte de uma família monástica alargada. Graças à BECOSA fomos iniciados no programa de formação dos mosteiros no qual participaram cinco monges da OHC a partir da África do Sul ao longo dos anos. Igualmente, por intermediação da BECOSA, participamos em diversos programas e cursos tornados possíveis pela generosidade da AIM. Isto poderia ser objeto de um artigo à parte; entretanto, é também uma boa ocasião de dizer «obrigado», uma vez mais!
O centro de retiro Volmoed
O centro de retiro Volmoed nasceu no princípio dos anos 1980, no pior do apartheid na África do Sul, de uma visão comum de Bernhard Turkstra, então proprietário de um hotel, e de Barry Woods, padre anglicano, para criar um lugar abertamente cristão mas onde as pessoas de todas as raças e pertenças religiosas pudessem encontrar segurança e acolhimento em vista de uma cura e de uma reconciliaç ão. Encontraram finalmente uma quinta chamada Volmoed (uma palavra africana que significa «cheio de coragem»), que era originalmente, no século XVIII, uma colônia de leprosos. Uma bela aventura de fé começou então nesse lugar maravilhoso que trouxe muitos frutos ao longo dos anos.
A comunidade residencial de Volmoed compõe-se de alguns casais de retirantes, todos muito ou pouco implicados na atividades cotidianas de Volmoed. O centro de retiro é gerido por uma equipe profissional cheia de dedicação sob a supervisão de um conselho de administração cujos membros não residem todos na propriedade. Para concluir, Volmoed está sob o patrocínio do bispo Desmond Tutu, grande amigo da ordem da Santa Cruz.

Mudanças em Volmoed
O que trouxe então os monges a Volmoed? Pouco após a sua criação, a escola Holy Cross cresceu regularmente uma classe por ano. Tornava-se evidente que a escola devia continuar a expandir-se, para além da fase de fundação, para se tornar uma escola primária inteira-mente à parte. Devido à disposição dos edifícios da propriedade, a opção menos cara e a mais sensata seria converter todo o recinto próximo dos monges em salas de aulas suplementares.
No início, os monges instalaram-se numa parte da hospedaria do mosteiro, mas esta solução depressa se revelou insustentável. Começamos então a procurar um outro alojamento e, devido a contactos anteriores com a comunidade Volmoed, pedimos-lhes ajuda para encontrar possibilidades no promontório ocidental.
Uma parte da ética de Volmoed é ser uma presença orante a todo o momento. Foi o que ofereceu o padre Barry Woods à sua morte no princípio de 2019. Assim, quando nos informamos sobre as possibilidades de instalação no promontório ocidental, a equipe de Volmoed convidou-nos a viver junto como uma presença orante. Foi assim que o priorado de São Bento em Volmoed viu o dia. Como era de se esperar, passar de um mosteiro totalmente autônomo a um espaço ecumênico existente e funcionando bem, oferece um conjunto particular de desafios e oportunidades.
A vida em Volmoed
Falei de Volmoed como de um lugar de cura e reconciliação, o que é pois em si um ministério muito dinâmico. Volmoed mantem relações com diversas organizações e comunidades locais e internacionais que se consagram à consolidação da paz e à reconciliação. Uma dentre elas é a Community of the Cross of Nails, na catedral de Coventry.
Através do programa de formação de liderança de jovens de Volmoed (VYLTP: The Volmoed Youth Leadership Training Programme), existe igualmente uma relação viva com a comunidade de Taizé na França. O VYLTP é um programa residencial de nove semanas, no fim do qual um ou dois jovens que se revelaram aptos são escolhidos e enviados a Taizé por três anos a fim de trabalhar no quadro do seu programa de voluntariado.
Para o culto, Volmoed dispõe de um complexo de capelas com uma grande capela principal, uma capela-santuário menor e, no nível inferior, várias outras salas. Estas salas e o santuário estão à nossa disposição. As partes do nível inferior servem-nos de scriptorium, de escritório e de pequena sala de capítulo.
Seguimos o nosso horário monástico cotidiano e reunimo-nos frequentemente com membros da comunidade Volmoed e/ou convidados. A nossa eucaristia dominical é frequentemente seguida por um certo número de pessoas que não se sentem particularmente ligadas a uma paróquia ou a uma congregação local.
Há várias décadas, Volmoed propõe um serviço de comunhão ecumênica às quintas-feiras de manhã que se revelou muito popular junto da comunidade da vila de Hermanus em sentido amplo («Acolhimento de pessoas com necessidades complexas»). A comunidade monástica foi convidada a dirigir o serviço na última quinta-feira do mês, e aproveitamos esta ocasião para apresentar à assembleia diferentes tipos de cantos (via YouTube) que ajudaram a acomodar as pessoas conduzindo-as a uma maior calma, em atenção ao grande número de pessoas presentes e não somente de monges! Estas eucaristias de quinta-feira permitiram-nos igualmente fazer conhecer melhor vários participantes do domingo.
Há muitas outras organizações e pessoas neste domínio que encontramos ou que esperamos encontrar e com as quais podemos atar relações e ministérios. Infelizmente, a maior parte do tempo que passamos aqui em Volmoed, na África do Sul, mas também no resto do mundo, foi bloqueada ou submetida a outras restrições devido à pandemia COVID-19. Esperamos continuar a desenvolver estas relações na medida do possível.
Enquanto comunidade monástica, agradecemos a Deus o estarmos em condições de oferecer uma direção espiritual, sobretudo nestes tempos difíceis. Este ministério começou quase imediatamente após a nossa chegada e permitiu, assim esperamos, uma evolução para certas pessoas. Muita gente se esforça verdadeiramente por estar presente quando entes queridos morrem, ou por poder estar com os doentes e/ou com os que se encontram sós. Dito isto, as formas de comunicação on line têm-se revelado inestimáveis neste ministério, sobretudo para aqueles que se encontram demasiado longe para nos virem ver pessoalmente.
Como diz São Tiago, «vós não sabeis sequer o que será a vossa vida amanhã», nestes tempos incertos, há muitas coisas que não sabemos; no entanto, em Cristo, sabemos o que é a nossa vida e damos graças por cada dia.

Mère Marie-Chantal Modoux
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Monges e monjas, testemunhas para nosso tempo
Irmãs do Mosteiro do Encontro
