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Bulletin

Vida monástica hoje

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Bulletin

“Toda a vida como liturgia”

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Bulletin

Capítulos Gerais cistercienses
(OCSO e OCist, Set. e Out. 2022)

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Vida monástica e sinodalidade

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A gestão da Casa comum

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Fratelli tutti,
A fraternidade na vida monástica

Vida monástica e sinodalidade

Boletim da AIM • 2022 - No 123

Índice

Editorial

Dom Jean-Pierre Longeat, OSB, Presidente da AIM


Lectio Divina

Lectio divina, sinodalidade e teocracia 

Dom Gerald Gonzalez y Lima, OSB


Perspectivas

• Um pequeno começo do caminho sinodal na OCSO

Dom Bernardus Peeters, Abade Geral


• A Regra de São Bento e a sinodalidade 

Madre Andrea Savage, OSB


• Escutar com o ouvido do coração

Irmã Jennifer Mechtild Horner, OSB


• A comunidade de Tibirine: exemplo de sinodalidade

Marie-Dominique Minassian


• Desafios da vida monástica beneditina na África Ocidental 

Irmã Thérèse-Benoît Kaboré, OSB


Economia e vida monástica

O ecossistema monástico, exemplo de uma rede cooperativa e solidária 

Marie-Catherine Paquier


Liturgia

A liturgia siro-malabar 

Dom Clément Ettaniyil, OSB


Grandes figuras da vida monástica

Madre Pia Gullini 

Irmã maria Augusta Tescari, OCSO


Notícias

O Studium do Priorado de Bouaké 

Secretariado da AIM

Sommaire

Editorial

O boletim da AIM tenta acompanhar os diversos impulsos da vida eclesial e da vida do mundo. É por isso que este número está em diapasão com a caminhada sinodal sobre o tema da sinodalidade, como o desejou o Papa Francisco.

A vida monástica tem alguma coisa de especial a dizer sobre este assunto? Sem dúvida e é nosso dever expressar a originalidade do nosso contributo. As três palavras sublinhadas na carta do Cardial Mario Grach, secretário geral do Sínodo dos bispos, para as comunidades monásticas dizem bem o que caracteriza o nosso contributo: escuta, conversão, comunhão. Uma escuta profunda a que São Bento nos convida desde o Prólogo da sua Regra e que desenvolve depois; uma conversão que faça passar do intelecto ao coração para aí cultivar a ligação com a fonte de vida; e uma verdadeira comunhão para harmonizar, a partir disso nossas relações fraternas, com amigos e sociais.

Voltados para este horizonte, nenhum de nós pode dar-se ao luxo de cruzar os braços, se é que tem essa tentação. Para nos animar a ir em frente, o Padre Geraldo González y Lima, membro da nossa equipe internacional, partilha conosco o encontro do Ressuscitado com os peregrinos de Emaús, partilhando suas dúvidas, questionamentos e recebendo as luzes daquele que se dá na sua Palavra e na fração do pão. Dom Bernardus Peeters nos comunica suas primeiras impressões de novo Abade Geral OCSO, caminhando com toda a Ordem. Duas monjas Beneditinas dão-nos seus pensamentos sobre a sinodalidade segundo a regra de São Bento. Uma leiga, especialista dos escritos de e sobre Tibirine, apresenta a bela experiência de sinodalidade feita por essa comunidade da Algéria.

Algumas rubricas, como de costume, estão neste número. A dinâmica da partilha de comércio monástico dá ecos da prática económica dos mosteiros. A liturgia siro-malabar da Abadia de Kappadu, no Kerala, vai nos fazer sair de nossos países; e a bela figura de Madre Pia Gullini, de Laval/Grottaferratta/Vitorchiano é um testemunho estimulante da vida monástica. Em final apresentamos a realidade do Studium de Bouaké, na Costa do Marfim, ajudado pela AIM.

Como se pode constatar, o contributo monástico para a Igreja e para o mundo está bem vivo. Os monges, as monjas, os irmãos e as irmãs da nossa grande família têm de tomar ainda mais consciência de sua responsabilidade neste campo, e vigiar para não se fecharem no campo estreito de sua comunidade local. Enraizemo-nos juntos na Palavra de Deus e no Corpo de Cristo para alargar nosso caminho, com o coração dilatado, em comunhão com todos os nossos irmãos e irmãs no caminho que conduz à vida.

Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

Presidente da AIM

Artigos

Lectio divina, sinodalidade… e teocracia

1

Lectio divina

Dom Geraldo González y Lima, osb

Monge da abadia São Geraldo (São Paulo, Brasil)

Membro da Equipe internacional da AIM

 

Lectio divina, sinodalidade… e teocracia

 

Muitas das nossas comunidades monásticas vivem momentos difíceis com o envelhecimento de seus membros, a falta de vocações, as consequências socio económicas da pandemia, das mudanças climáticas etc, e devem tomar decisões complexas com respeito ao presente e ao futuro próximo.

Neste contexto, recebemos um apelo renovado do Papa Francisco para utilizar a tradição e a sabedoria do conceito de sinodalidade, na qual cada um é convidado a escutar e a ser escutado.

Quando se pensa em sinodalidade em termos beneditinos, pensa-se logo em RB 3 (cap. 3 da regra de São Bento) em que todos são chamados a conselho, incluindo os mais novos. No entanto, diante das decisões complexas e, às vezes com fortes consequências para as nossas comunidades, perguntamo-nos se somos uma “monarquia”, ou uma “democracia”, e a mesma tradição monástica nos lembra que não somos nem uma coisa, nem outra, mas uma “teocracia”, entendida como a comunidade que procura junta a vontade de Deus e sua realização concreta na vida.

Como então harmonizar “sinodalidade” com “teocracia” para procurar a vontade de Deus e sua realização nas nossas comunidades, segundo a tradição beneditina?

Uma vez mais a tradição monástica beneditina dá-nos um instrumento precioso: a lectio divina partilhada, comunitária! Usamos esse instrumento? Proponho essa possibilidade baseada na leitura bíblica dos discípulos de Emaús (Luc. 24, 13 – 35):

“13 Nesse mesmo dia, dois deles viajavam para um povoado chamado Emaús, a duas horas de caminho de Jerusalém, 14 e conversavam sobre todos esses acontecimentos.”

Nos caminhos e na história de salvação das nossas comunidades, falamos de tudo o que acontece, quer sejam momentos de dúvida e de dor, ou de felicidade e de alegria? Vale a pena lembrar que quando partilho uma dor, ela é dividida por dois, e quando partilho uma alegria, ela se multiplica.

“15 Ora, enquanto caminhavam e discutiam entre si, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles; 16 mas seus olhos estavam impedidos de reconhecê-lo.”

Aonde dois ou três estão reunidos em seu nome, quer dizer numa lectio partilhada, Não caminha Jesus no meio deles? Mesmo se às vezes não o reconhecemos por causa da aridez, ele “está”!

“17 Jesus disse-lhes: que palavras são essas que trocais enquanto ides caminhando? E eles pararam com o rosto sombrio. 18 Um dos dois, chamado Cléofas, lhe perguntou: tu és o único forasteiro em Jerusalém, que ignora os fatos que nela aconteceram estes dias?”

Às vezes começamos tristemente a lectio divina, mas através da sua Palavra, Jesus não deixa de nos interrogar e de procurar a razão da nossa tristeza. Persevero na procura de Deus?

“19 Ele disse-lhes: Quais? Responderam: o que aconteceu a Jesus o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obras e em palavras diante de Deus e de todo o povo. 20 nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. 21 Nós esperávamos que fosse ele quem iria redimir Israel; mas com tudo isso, faz três dias que todas essas coisas aconteceram! 22 É verdade que algumas mulheres, que são dos nossos, nos assustaram. Tendo ido muito cedo ao túmulo 23 e não tendo encontrado o corpo, voltaram dizendo que tinham tido uma visão de anjos a declararem que está vivo. 24 Alguns dos nossos foram ao túmulo e encontraram as coisas como as mulheres haviam dito; mas não o viram”.

Na lectio divina não encontramos constantemente a paixão, morte e ressurreição de Jesus? E na lectio não encontraremos o sentido da paixão, da morte e da ressurreição de nossas comunidades?

“Sei que é Páscoa, porque mereci a alegria de te ver” diz São Bento ao sacerdote que o foi visitar a Subiaco para celebrar a Páscoa com ele (II Dial. 1).

“25 Ele então lhes disse: insensatos e lentos de coração para crer tudo o que os profetas anunciaram! 26 Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória? 27 E começando por Moisés e por todos os profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito.”

Por conseguinte, na lectio Jesus não nos fala da sua história de salvação e da nossa? Contudo para ter esta “inteligência”, quero dizer para fazer esta leitura divina dos acontecimentos baseados nas Sagradas Escrituras, é preciso sempre pedir a ajuda do Espírito Santo.

“28 Aproximando-se do povoado para onde iam, Jesus simulou que ia mais adiante. 29 Eles, porém, insistiram dizendo: Fica conosco porque cai a tarde e o dia já declina. Entrou então para ficar com eles. 30 E uma vez â mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o e depois partiu-o e distribuiu-o a eles. 31 Então seus olhos se abriram e o reconheceram; ele, porém ficou invisível diante deles.”

Partilhando “a mesa da Palavra”, o ambão e partilhando a “mesa do Pão”, o altar, não reconhecemos quem é Jesus? Na sua Palavra partilhada não “permanece” ele conosco?

“32 E disseram um ao outro: Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras? 33 Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram para Jerusalém. Acharam aí reunidos os Onze e seus companheiros (…)”

A lectio divina partilhada nessas “mesas” não torna ardente os nossos corações? Não transforma a tristeza em alegria, e a falta de sentido em esperança? A lectio divina partilhada não nos dirige para a Jerusalém celeste, a Cidade da paz aonde se realiza a vontade de Deus sobre nós?

Não nos pergunta São Bento “que página, com efeito, ou que palavra da autoridade divina no Antigo e no Novo Testamento não é uma norma retíssima da vida humana? (RB 73, 3)

“(…) que lhes disseram: 34 É verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão. 35 E eles narraram os acontecimentos do caminho e como haviam reconhecido o Senhor na fração do pão.”

Não nos leva a lectio divina partilhada a ressuscitar com Jesus? Não seria também o caminho da ressurreição das nossas comunidades? Na lectio partilhada não fazemos a experiência do encontro com Jesus e do discernimento da vontade de Deus o Pai pelo Espírito Santo?

Não é este o sentido do “Suscipe me” nas nossas comunidades: “Recebe-me Senhor, segundo a tua palavra e terei a vida, e não confundas a minha esperança” Sal. 118, 116 ?

 

Senhor

Partilhando a tua palavra

Nós te reconhecemos no Pão da Vida

E na história da nossa salvação

Amem

Um pequeno começo de caminho sinodal na OCSO

2

Perspectivas

 Dom Bernardus Peeters, OCSO

Abade Geral

 

Um pequeno começo de caminho sinodal na OCSO

 

No dia 11 de Fevereiro 2022, o Capítulo Geral da Ordem dos Cistercienses de Estrita Observância, em Assis (Itália) me elegeu como seu novo Abade Geral. Foi um acontecimento que se passou numa atmosfera impressionante de sinodalidade, sem que esse tema tenha sido abordado explicitamente. A síntese apresentada no final da primeira parte do Capítulo, resume a experiência assim: neste Capítulo “tomamos consciência que nenhuma solução dá esperança, se não for o começo de uma caminhada comum, de um caminho sinodal, no qual encontramos unidade e energia no seguimento de Cristo, caminho, verdade e vida, ele que nos chama a segui-lo com amor e confiança.”

Embora a sinodalidade não tenha sido um tema explícito, estava no ar, porque fazemos parte de uma Igreja plenamente engajada no processo sinodal, que conduz ao sínodo dos bispos de 2023. O novo Abade Geral e seu Conselho foram convidados a iniciar o processo sinodal na Ordem. È o que comecei a fazer ao longo dos últimos meses.

Como prevíamos fazer a segunda parte do nosso Capítulo geral em Setembro de 2022, disse aos superiores, depois da minha eleição, que gostaria de visitar todas as reuniões regionais que acontecessem entretanto, para melhor conhecer os superiores da Ordem, mas também para escutar o que eles achavam importante neste momento, para a vida da Ordem. Dei minha palavra e a 20 de Maio deixei Roma para uma viagem de seis semanas, para participar em diversas reuniões regionais na Inglaterra, na Bélgica, na França, no Canadá, nos Estados Unidos e em Espanha. O acento foi posto mais nos encontros de superiores, e não tanto na visita às comunidades individuais, embora certas comunidades tenham tido a visita durante esta viagem.

Antes, tinha pedido às regiões regionais que partilhassem entre elas e comigo o que sonhavam para o futuro da Ordem. Para que esses sonhos não parecessem irrealistas, pedi-lhes também que partilhassem como viam a realização desse sonho no espírito de uma Igreja sinodal, na qual a participação e a coresponsabilidade são essenciais (Documento preparatório, 20 e VIII). Escutemos com o Espírito Santo, que nos deu o nosso carisma, através da Palavra e da Tradição, com o desejo não de uma outra vida cisterciense, mas de uma vida cisterciense diferente.

Cheguei a este tema, porque durante a primeira parte do Capítulo geral, li o livrinho do Papa Francisco “Let us dream. The path to a better future” (Simon & Schuster, New York, 2020) Ele escreveu esse texto em plena pandemia e afirma que os sonhos podem ajudar-nos a sair da crise. De três modos os sonhos nos ajudam a enfrentar a realidade e a ver aberturas para um novo futuro. Ver – escolher – agir são as três etapas que devemos fazer a partir dos nossos sonhos.

“É o momento de sonhar alto, de repensar nossas prioridades – o que apreciamos, o que queremos e o que buscamos – e comprometermo-nos a pôr em prática, na nossa vida quotidiana, aquilo que sonhamos. O que entendo por este momento é semelhante ao que Isaías ouviu Deus dizer-lhe: “Vinde e discutamos, diz o Senhor”. Ousemos sonhar” (Prólogo)

Isso mostrou ser um bom utensílio para que os superiores falassem entre si, de uma maneira completamente nova. Normalmente as reuniões regionais caracterizam-se pela partilha dos relatórios sobre a situação das comunidades. Mas muitas vezes isso fica no superficial, pois mostrar-se vulnerável uns diante dos outros, é difícil, mesmo entre superiores. Em todas as reuniões regionais, ao longo da minha viagem, se constatou que a partilha dos sonhos de cada um, levou as pessoas a um outro nível. Não havia nenhuma intenção de combater, ou de desafiar os sonhos do outro. Apenas um exercício de escuta, com o respeito de ver, escolher e agir. A minha intenção é reunir esses sonhos e a partir deles fazer o discurso de abertura da segunda parte do nosso Capítulo geral em Setembro. Este processo de expressar os sonhos é uma primeira etapa no processo sinodal que começamos na Ordem. Começou muito timidamente, porque sonhar não será irrealista? Mas ao mesmo tempo, muitas comunidades pegaram o tema e começaram a sonhar e a escutar os sonhos dos outros. Vai ser preciso dar outros passos no caminho sinodal, mas temos tempo.

Muitas vezes ouve-se dizer que a vida monástica é sinodal por natureza. Sim, é verdade, mas como disse no final da primeira parte do Capítulo, é bom redescobrir o que temos. Mas confessemo-lo, a sinodalidade está nas nossas estruturas, mas utilizamo-la verdadeiramente?

“É verdade, a escuta está onipresente na Regra, mas escutamos verdadeiramente a Deus na nossa oração, na nossa lectio, no nosso trabalho? Como superiores, somos bons no escutar todos nas comunidades, ou escutamos só um grupo privilegiado de irmãos, ou de irmãs? É fácil dizer que escutamos os mais jovens, mas é verdade? Como escutamos a Igreja local, a que participamos? Como é a escuta daqueles que batem à nossa porta? São verdadeiramente o Cristo que chega, ou atrapalham? O Capítulo geral me convenceu que temos a capacidade de escutar. Isso é possível porque recebemos, no batismo, sem exceção, esse dom do Espírito Santo. Foi confirmado no crisma e alimenta-se diariamente da eucaristia. O que eu sonho para todos, é que nos tornemos bons na escuta. Mas atenção, isso exige de nós todos a conversão!” (Discurso no encerramento da 1ª parte do Capítulo de 2022)

É muito cedo ainda para tirar conclusões dessa viagem através dos sonhos dos diferentes grupos regionais. No momento em que escrevo estas linhas, falta-me visitar alguns grupos e entre eles estão as três grandes regiões do hemisfério sul. Fazer um resumo, ou uma conclusão seria prematuro, e um contra testemunho de uma atitude sinodal. Por outro lado quero implicar mais as regiões na direção que a Ordem deve tomar.

Esta primeira grande viagem confirma o sentimento geral da primeira parte do Capítulo geral, que temos de dar mais atenção ao crescimento pessoal e comunitário do “nós” em vez do “eu”. Maria mostra-nos 0 caminho para ser bons cistercienses. No final da 1ª parte do Capítulo geral, dei a todos os superiores o ícone de “Maria, Mãe do Silêncio” como meio para sermos bem acompanhados no caminho sinodal, e na escuta, viver os três movimentos expressos no ícone: parai, acalmai-vos e esperai!

A Regra de São Bento e a sinodalidade

3

Perspectivas

Madre Andrea Savage, osb

Abadia de Stanbrook (Inglaterra)

 

A Regra de São Bento e a sinodalidade

Apresentação na Conferência das delegadas da CIB

23 de Maio 2022

 

A sinodalidade está na moda, na hora atual. Na Igreja católica estamos implicados no processo que nos levará ao Sínodo dos Bispos, no outono de 2023. Caminhamos todos juntos. O Papa Francisco convidou todos os batizados a participarem num tempo de escuta do Espírito Santo e de nossos irmãos e irmãs em humanidade.

O denominador comum entre a regra de São Bento e a sinodalidade é a palavra “escuta”, assim como a palavra “comunidade”. A Regra começa com a palavra “escutar” e esta escuta está no centro de tudo o que escreve São Bento. No centro está a nossa escuta da vontade de Deus, que nos guia ao longo da nossa vida monástica, na oração, na lectio divina, por meio de nossas irmãs e no trabalho que nos é pedido assumir em comunidade.

Aprendemos todos pouco a pouco o que significa ser uma igreja sinodal. O Papa Francisco o descreve resumidamente no seu discurso por ocasião dos 50 anos da instituição do sínodo dos bispos em Outubro 2015:

“Uma igreja sinodal é uma igreja que escuta, com a consciência que ‘escutar é mais do que ouvir’ É uma escuta recíproca na qual cada um tem algo a aprender. O povo fiel, o colégio episcopal, o bispo de Roma: cada um à escuta dos outros, e todos à escuta do Espírito Santo, o ‘Espírito da verdade’ (Jo 14, 17) para saber o que ele diz às Igrejas (Apoc. 2, 7).”

Acrescentaria a isto que uma Igreja sinodal deve ser muito beneditina. Há na Regra muitas coisas que a Igreja pode pegar e usar na arte de escutar uns aos outros, e de escutar a Deus. De fato o documento preparatório para o sínodo de 2023, cita RB 3, 3 sobre a convocação da comunidade a conselho.

“Dissemos que todos fossem chamados a conselho, porque muitas vezes o Senhor revela ao mais moço o que é melhor” (RB 3, 3).

É um princípio que devemos utilizar em toda a Igreja no processo sinodal e na nossa escuta. Fundamentalmente somos chamados a nos escutar mutuamente para discernir qual o caminho a seguir. Caminhamos juntos. Para escutar o que o Espírito diz ao Povo de Deus, a todos os batizados, significa dar a palavra a todos. Se as pessoas não têm voz, (oportunidade de falar) ficam frustradas e começam a murmurar, e todos sabemos o que São Bento diz sobre a murmuração. É algo que ele detesta. Ele diz: “Não murmureis” (RB 4, 39). Embora sejamos convidados a guardar silêncio, mesmo de boas palavras em RB 6, há um equilíbrio na Regra entre os momentos em que se deve falar e os momentos em que se deve calar. O silêncio é para ouvir a voz do Senhor, que nos indica o caminho da vida. E isto nós o fazemos no silêncio da oração e da lectio divina, mas igualmente na escuta de nossas irmãs, no exemplo que nos dão. Em tudo isto aprendemos a discernir quando falar e quando calar. Quantas vezes já fizemos a experiência, em reuniões capitulares, que são aqueles que falam raramente, que mais têm a dar!

Isto ajuda a evitar “agendas escondidas”. Quando abordamos as reuniões comunitárias devemos cuidar para que a nossa ordem do dia não bloqueie realmente o funcionamento do Espírito Santo, se não ficarmos abertos.

Como sabemos a regra de São Bento indica o Evangelho como guia; e redescobri, recentemente, a história de Emaus, como um exemplo de sinodalidade em ação. Era uma viagem a pé, literalmente, mas foi também uma caminhada espiritual. Pode ser descrita como a história de uma reunião capitular em miniatura. Todos os elementos estão lá: os dois discípulos – a comunidade, Jesus – o Abade, e discutiam sobre o que tinha acontecido. Olhemos a história, tal como ela aconteceu. Os dois discípulos estão visivelmente abatidos, pois tinham esperado que Jesus fosse aquele que ia resgatar Israel (Luc 24, 21). Queriam que ele fosse o Messias que libertaria Israel. Assim aconteceu, mas não no modo que eles esperavam, segundo os seus planos.

Jesus diz-lhes: “ó gente sem inteligência! Como o coração de vocês é lento para crer em tudo o que os profetas disseram! Não era preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória?” E começando por Moisés e todos os profetas interpretou-lhes tudo o que a Escritura dizia a seu respeito. (Luc 24, 26-27)

Os discípulos abriram o coração e escutaram. Sabemos que escutaram porque estavam prontos para mudar. Jesus não somente libertou Israel, mas toda a humanidade. Foi quando estavam à mesa, que ele tomou o pão, o abençoou, rompeu, que seus olhos se abriram; então reconheceram quem era que lhes falava, mas Jesus desapareceu. E disseram: “não ardia o nosso coração quando ele nos falava no caminho e nos abria as Escrituras?” Muitas vezes, quando nos reunimos para discutir coisas importantes, e nossa abertura e vontade de escutar permitem ao Espírito Santo de fazer o seu trabalho.

Lembro-me quando nossa comunidade procurava discernir sobre o caminho a seguir, no final dos anos 90. A questão era saber o que nos daria a vida. Em 1996, se me tivessem perguntado se eu queria mudar, construir um novo mosteiro, minha resposta teria sido um Não bem forte. O que mudou? Nosso processo de discernimento começou com a comunidade, com ajuda de pessoas de fora pela primeira vez. Não foi um grande sucesso, mas isso permitiu que falássemos e nos escutássemos. Tivemos todo o tipo de ajuda de profissionais: contadores, arquitetos etc Escutamos o que eles nos tinham a dizer. Recebermos igualmente conselhos espirituais excelentes do interior e exterior da nossa própria Congregação. As vezes parecia-me que ponto de vista mudava. Tinha chegado o momento de abandonar  caminhos conhecidos! Nossa visão inicial era adaptar e mudar o mosteiro. A Madre Joanna Jamieson, que era então a Abadessa, decidiu de não limitar a nossa visão , mas de permitir que sonhássemos. “Sonhem com a vida beneditina de mulheres na Inglaterra, no séc. 21 e ponham isso em prática na vida da nossa comunidade” Decidimos examinar todas as opções que poderiam se oferecer a nós. No fim, tínhamos 5 possibilidades. Foi nesse momento que senti que tudo tinha mudado. Ter a possibilidade de sonhar, libertou-me; abriram-se as janelas e o Espírito Santo pôde entrar. Alguns conselhos de Madre Joanna também me ajudaram: “Deus está nos fatos”.

Notre vision initiale était d’adapter et de changer notre monastère. Mère Joanna Jamieson, qui était alors abbesse, a décidé de ne pas limiter notre vision mais de nous permettre de rêver. « Rêvez de la vie bénédictine des femmes en Grande-Bretagne au 21e siècle, et appliquez-la à la vie de notre communauté. » Nous avons décidé d’examiner toutes les options qui pourraient s’offrir à nous. Au final, nous avions cinq options. C’est à ce moment que j’ai senti que tout avait changé. Avoir la permission de rêver m’a libérée ; les fenêtres ont été ouvertes et le Saint-Esprit a été autorisé à entrer. Quelques conseils de Mère Joanna m’ont également aidée : « Dieu est dans les faits ».

Olhando para trás, agora, sobre o caminho que fizemos juntas, como comunidade, vejo: tínhamos muitos planos, mas muitos acabaram  na cesta dos papéis. Deus fez-nos dar um passo de cada vez. Aprendemos muito na viagem feita juntas, houve muitos altos e baixos. Fizemos erros, mas para além de tudo isso, ficamos mais fortes como comunidade. Aprendemos a escutarmo-nos umas às outras, estávamos dispostas a mudar. Vem-me à memória a frase de São João Henry Newman: “Viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado muitas vezes”.

Escutar com o ouvido do coração

4

Perspectivas

Irmã Jennifer Mechtild Horner, OSB

Mosteiro de Beech Grove (Estados Unidos)

 

Escutar com o ouvido do coração

A Regra de São Bento e a sinodalidade

 


Desenho do Irmão Yves, Abbaye de la Pierre-qui-Vire (França).

No dia 10 de outubro de 2021, começo do processo sinodal, o Papa Francisco pronunciou uma homilia na qual descreveu os elementos necessários do que deve ser um sínodo. O Papa Francisco declarou que celebrar a sinodalidade é caminhar juntos no mesmo caminho. Olhando o modo como Jesus caminhou com os outros, o Papa mostrou os três caminhos que somos chamados a pegar juntos, como comunidade de fiéis. Somos chamados a encontrar, a escutar a discernir. Escutando, e depois lendo a homilia do Papa, fui tocada pelo modo como descrevia o modo de vida beneditino, sem o nomear.

O modo de vida monástica é verdadeiramente um caminho de encontro. É através do encontro que esperamos crescer na confiança, confiança em Deus e uns nos outros. Este encontro acontece diariamente no recinto do mosteiro, quando uma irmã encontra outra. Este encontro convida cada monja a abrir-se à outra, fazendo espaço no seu coração para as necessidades e os olhares da outra. É através do cotidiano de cada encontro que uma irmã se abre à possibilidade de conversão, tendo a coragem de falar e a humildade de escutar. Cada encontro é moldado pela profundidade da escuta. É a profundidade da escuta que nos muda e nos leva à conversão.

Começando a Regra com a palavra “obsculta” ESCUTA, São Bento diz claramente como devemos viver, como monjas, a vida comum. Somos chamadas a “escutar com o ouvido do coração”. É na escuta, na escuta mútua, que uma comunidade caminha para Deus. É este caminho juntas que nos levará para onde somos chamadas, o próprio coração de Deus. Trata-se de nos escutarmos umas às outras para que possamos, verdadeiramente, escutar o que Deus nos diz. Não se trata de escutar algumas, mas de escutar a todas. O nosso carisma de hospitalidade leva-nos ainda mais longe. Por meio do nosso carisma de hospitalidade somos chamadas a encontrar os que estão fora do mosteiro, e também aqueles que encontramos, que vêm à procura de conselhos, ou cuidados.

No cap. 3 da Regra, São Bento diz ao Abade, abadessa, prioresa, que cada vez que uma decisão importante deve ser tomada, deve convocar  toda a comunidade, para que cada membro possa ser escutado. É esta escuta mútua, no seio da comunidade, que está no coração do que o Papa Francisco entende por sinodalidade. Segundo ele, todos devem ser escutados, não somente alguns. Isso é bem diferente do que se faz no mundo, e até mesmo na Igreja. Por isso o apelo do Papa para este sínodo é um verdadeiro presente para a nossa Igreja. Não é somente o clero que fala, mas todos, para que a voz de Deus possa ressoar em toda a Igreja.

Embora São Bento queira que cada um seja ouvido, o cap.3 diz como cada irmã deve participar quando se reúne para um conselho. Cada membro deve falar com humildade, sem defender teimosamente suas ideias. Evidentemente, cada partilha faz-se no quadro da Regra e não deve sair dela. Os membros não devem seguir o desejo de seu próprio coração e não devem enfrentar a abadessa, ou a prioresa com agressividade. No cap. 69, São Bento diz claramente que nenhum membro deve ter a pretensão de defender um outro. Cada um fala por si. Isto permite a cada membro dizer o que pensa, mas de modo a não atrapalhar a comunidade. Quando se é chamado a consulta, escutando-se uns aos outros, pode-se discernir o movimento do Espírito. A abadessa / prioresa, por seu lado, deve escutar profundamente e refletir sobre o que é partilhado, para poder tomar uma decisão. Esta decisão não é tomada levianamente, mas de modo a construir a comunidade e trazer a paz.

São Bento quer que todo o mundo seja escutado, dos mais novos aos mais velhos, mas isso não é uma democracia. Sim, todos devem ser escutados, mas quando uma decisão é tomada, cada irmã é chamada a obedecer. São Bento sabia que as decisões devem ser tomadas, e que todo o mundo não obtém o que queria. Quantas vezes ouvimos depois: “Você não me escutou”? ou “não fui ouvida”? Na realidade a pessoa foi ouvida, mas o que foi decidido não era o que ela queria. Todas já passamos por isso. É difícil partilhar o que temos no coração, e constatar que a comunidade é chamada a ir numa direção diferente. É isso a escuta e o discernimento comunitários. Dizer o que pensamos,  escutar a voz das outras e estar abertas à voz da comunidade no seu conjunto. É quando abandonamos a vontade própria, que podemos escutar verdadeiramente o Espírito no meio de nós. Para crescer neste campo, temos de experimentar várias vezes que a nossa voz conta. Quando experimentamos isso, podemos aprender a crescer na confiança.

No chamado à sinodalidade, a abadessa/prioresa tem um papel importante. Deve escutar profundamente com o ouvido do coração, o que está no coração de cada membro. Evidentemente isso acontece quando a comunidade é chamada a conselho. Mas é importante lembrar que isso acontece também em outros momentos. De fato, toda a vida monástica é um chamado à sinodalidade. Dia após dia, como monges – monjas somos chamados a andar juntos no mesmo caminho. Somos chamados a escutarmo-nos não somente no Conselho, mas ao longo da vida, que vivemos juntos. Somos chamados  a estar sempre “em modo de escuta”, quando cantamos os salmos, partilhamos a refeição na mesa comum, durante o tempo de trabalho manual e durante os recreios. Cada vez somos chamadas a percorrer juntas o mesmo caminho. Cada instante nos dá ocasião de escutar, e esta escuta diária permite-nos escutar mais profundamente, quando nos reunimos em Capítulo. É nesta escuta diária que crescemos na confiança umas nas outras. Por isso São Bento fala tão fortemente contra a murmuração. Murmurar é o contrário de escutar. Murmurar contra uma irmã, é em certo sentido, dizer seu nome em vão. É um corte e não uma verdadeira relação com a outra. A sinodalidade só pode acontecer se formos capazes de encorajar a outra e de começar a crescer na confiança.

A abadessa / prioresa tem de convidar a comunidade a um profundo amor umas pelas outras. Deve criar um espaço seguro em que se pode falar, ser ouvido e em que as diferenças são aceitas, mais do que temidas. Deve encorajar o amor, rejeitar a amargura para que o bom zelo prevaleça na comunidade e o mau zelo seja arrancado. A meta do caminho que percorremos juntas, é a mesma para todas. Conforme as palavras de São Bento : “Nada preferir ao amor de Cristo, que nos conduza juntas à vida eterna”.

A sinodalidade no modo de vida beneditino ultrapassa os muros do mosteiro e vive-se também de outro modo. À medida que as comunidades se agrupam em federações, ou em congregações, desenvolve-se uma outra forma de sinodalidade. As comunidades ajudam-se mutuamente, e, graças à partilha, tornam-se mais solidárias, o que lhes seria difícil se ficassem isoladas. Juntos, todos e todas gerem o carisma beneditino e passam-no de uma a outra geração.

Uma outra experiência de sinodalidade está na Comunhão Internacional das Beneditinas (CIB). A primeira reunião da CIB em que participei, aconteceu na Coreia do Sul. Lembro-me a experiência da minha chegada ao mosteiro de Daegu, como se fosse ontem; estava um pouco nervosa, porque nunca tinha assistido a um tal encontro antes. As irmãs Coreanas no acolheram de braços abertos. Vínhamos de países diferentes, falávamos línguas diferentes, tínhamos roupas diferentes, e no entanto, éramos todas beneditinas. Sim, algumas eram irmãs, outras monjas, e certos hábitos eram diferentes por causa das culturas diferentes, mas a nossa essência era a mesma. Somos beneditinas na alma. Durante os dias em que estivemos juntas, escutamos profundamente e dialogámos sobre nossos pontos de vista e nossas sugestões, com respeito e sob o élan da graça. Tinhamos chegado como estrangeiras, e partimos como amigas. Andando no mesmo caminho, a CIB torna-se um lugar em que podemos crescer juntas e partilhar nosso carisma com o mundo.

Estou certa de que todas temos experiência de sinodalidade nas nossas comunidades, federações, congregações e CIB. Às vezes isso acontece facilmente, às vezes é difícil e, no entanto, a sinodalidade é sempre necessária se queremos crescer no modo de vida beneditina. É um presente que temos de partilhar com o mundo. Façamo-lo com coragem e determinação.

A Comunidade de Tibirine: exemplo de sinodalidade

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Perspectivas

 Marie-Dominique Minassian

 

A Comunidade de Tibirine:

exemplo de sinodalidade[1]

 

Mémorial des frères de Tibhirine à l’abbaye d’Aiguebelle, France.

 

“O tema da sinodalidade não é um capítulo de um tratado de eclesiologia, menos ainda, uma moda, um slogan ou um novo termo a utilizar ou a explorar em nossas reuniões. Não! A sinodalidade expressa a natureza da Igreja, sua forma, seu estilo, sua missão.”[2]

 

O Papa Francisco que se dirige à sua diocese de Roma, explica em termos simples, mas, todavia, incisivos, a tomada de consciência, que ele desejaria suscitar toda a Igreja. A sinodalidade diz algo sobre nós, sobre nossa identidade, sobre esse “entre nós”, que devemos fazer crescer, para expandir em seguida.

Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta, com a consciência de que escutar “é mais do que ouvir”. É uma escuta recíproca na qual cada um tem algo a aprender[3]. Isto nos coloca imediatamente na pista do que há para escutar e da maneira que nós escutamos e comunicamos. São somente palavras que trocamos, palavras que passam entre nós, ou é mais? Para explicar o modelo de sinodalidade que ele gostaria de promover na vida da Igreja, o Papa Francisco nos oferece um exemplo na pessoa do santo que lhe é caro: são Francisco de Assis “escutou a voz de Deus, escutou a voz do pobre, escutou a voz do doente, escutou a voz da natureza e transformou tudo isso em um modo de vida”[4].


A escuta da Palavra

É aqui que começamos a entrever um paralelo entre são Francisco e Tibirine. Porque Tibirine é também um estilo de vida, uma vida de escuta. Quando lemos os escritos que desvendam essa espiritualidade, percebemos que o que foi primeiro em sua experiência foi a escuta da Palavra de Deus. Para monges, não há nada de original... Por tudo isso, os monges são uma lembrança permanente para toda a Igreja daquilo que é essencial na vida cristã: viver a partir do Outro, encontrado primeiro, nesta Palavra que chega a nós.

Aqui está um primeiro texto de Cristiano de Chergé, o prior dessa comunidade, que partilha conosco um pouco de sua experiência desta Palavra.

“A Palavra de Deus é um poço. Toda Palavra, cada Palavra... No deserto de nossa linguagem há ‘palavras vazias’, e há também ‘poços’ (como a torneira de água morna, a palavra fria ou calorosa), a palavra da boca para fora e a palavra do coração. Quem quiser escutar Deus descobrirá esses poços, cada um, o seu. A Palavra que é entregue, ainda deve ser perfurada, sondada...”[5].

A partir do momento em que nos arriscamos à beira deste poço, entramos no dinamismo da Palavra que revelará palavras que vivem em nós. Estamos do lado da água morna, da água fria ou da água quente? De quê nossas palavras são preenchidas? Esta é uma pergunta diante da qual a Palavra nos colocará constantemente. Somos efetivamente o lugar da encarnação para a Palavra? Correspondemos ao Amor que nos chama quando a lemos ou quando a escutamos?

Escutemos nosso irmão Cristiano aos seus irmãos, num Capítulo:

“É Ele [Deus] que escutamos [Palavra], é Ele que celebramos, é sua obra que queremos fazer. Isto quer dizer que aprendemos a nos ANULAR: investimos inteiramente sem ocupar espaço. A Palavra conheceu o risco de se confiar a nós... não é para que A encerremos em nosso sentido (isto seria contrassenso), nem em nossa maneira de lê-La, como se fôssemos nós que devíamos torná-La viva. Ela VIVE diferente de nós. Não temos que dar sopro a Ela... em vez disso, descobrir que Ela é realmente nosso SOPRO”[6].

Quando abrimos o livro, o que nos acontece é efetivamente o sopro do outro. Como a vela de um barco que infla, não somos nós que fazemos o barco avançar, é o sopro, o vento. Cabe a nós expor-nos, aceitar deixar-nos levar por este vento, este sopro que é o do Espírito. Irmão Cristóvão, o mais jovem da comunidade, avança a mesma ideia à sua maneira:

“Permanecer em sua palavra: não repeti-la docilmente como uma lição aprendida, mas habitá-la, enraizar-se nela, viver nela, morrer nela até se conformar a ela, pouco a pouco, desposar seu movimento, o Sopro”[7].

Então, o que devemos esperar quando abrimos o livro? Devemos esperar uma conversão, um profundo movimento de conversão ao outro: um êxodo e uma conversão para todos.

Voltemos ao irmão Cristiano que, em outro Capítulo aos seus irmãos vai nos permitir dar um passo a mais:

“O objeto da lectio: um meio privilegiado na escola da contemplação e para o despertar ‘da fé na realidade da presença de Deus em si e ao redor de si’. Ela é ‘fonte de oração contínua’ que é união do coração a Deus que fala ao coração. ‘Descubra o Coração de Deus na Palavra de Deus’ (são Gregório). O resultado? Quem ler vai receber a graça de encarnar esta Palavra em sua vida, que será totalmente transformada. Cf. a pergunta de Jesus ao escriba: ‘O que você lê na Escritura: O que está escrito’? A TEB traduz ‘Como você lê’? (Lc 10, 26)... Faça isto e viverá [...].

‘Conformemo-nos interiormente à Escritura’, diz são Bernardo. Isaac de l’Étoile: ‘Que Cristo seja para nós, exterior e interiormente, o Livro escrito. Apresente sua vida para que os outros leiam’! Uma verdadeira ascese da inteligência e do comportamento”[8].

Um longo texto muito denso: façamos alguns destaques...

Primeiramente, quanto mais lemos a Palavra de Deus, mais entramos no mistério de uma Presença: a realidade da presença de Deus em nós. Pouco a pouco nos tornamos cada vez mais sensíveis a esta presença de Deus em nós, mas também ao nosso redor. A sensibilidade do ouvido interior vai aguçar a escuta exterior. Descobrimos que Deus fala... e que Ele o faz através dos outros e dos acontecimentos...

Segundo destaque: quanto mais lemos a Palavra de Deus, mais recebemos a graça, de encarnar o que esta Palavra significa em nossa vida, se acreditamos nela, e de partilhar o que esta Palavra quer trazer de fruto em nossa vida.

Por fim: “Apresente sua vida para que outros leiam”. Parece-me que devemos encontrar ali, a força e o desejo do testemunho, algo que fale naturalmente, que “transpire” Deus, e que leve os outros a se perguntarem sobre a fonte profunda de nossa existência. Irmão Roger de Taizé tinha esta belíssima recomendação: “Fale de Deus somente se lhe fizerem perguntas, mas viva de maneira que lhas façam”.

Todos os dias somos desafiados a escutar: “Você escutará hoje sua Palavra? (Sl 94)”. Interpele o salmista, toda manhã, no Ofício de Vigílias... Irmão Cristiano comenta aos seus irmãos:

“É HOJE que a Palavra será lida no HOJE de Deus, é hoje, também, que devemos acolhê-La, ESCUTÁ-La. Eternamente, o Pai diz do Verbo: Eu hoje Te gerei! No mistério da encarnação a geração do verbo se realiza em todos os que nasceram de Deus, porque O acolheram todos os dias. Este Salmo nos lembra que a eternidade só tem hoje para se significar, para se encarnar”[9].

“É hoje que a Palavra será lida no hoje de Deus”. A fórmula é muito elegante... Há como “dois hoje”: o nosso, o de Deus, e toda a graça a receber e a viver, é que os dois hoje se tornem apenas um. E quando os dois hoje coincidem, é isso que cria eternidade. A eternidade só tem hoje para se significar e se encarnar. Geralmente o irmão Cristiano se lembra disso em seus escritos. É uma bela missão, pessoal e comunitária.

Por que irmão Cristiano insiste neste “hoje”? Passamos nosso tempo em comunidade, lendo e relendo a Palavra; a liturgia no-la apresenta ano após ano, e podemos ter a impressão de conhecer os textos de cor! Por que lê-los e relê-los senão por que devemos recebê-los hoje? A Palavra não muda, nós é que mudamos... Então, a Palavra que não muda poderá, portanto, nos dizer algo novo a nós que mudamos... vamos escutar algo diferente para a nossa vida hoje. A Palavra solicita nosso coração todos os dias para despertá-lo. Cabe a nós saborear cada vez mais o que há de único no nosso hoje[10]. Maravilha! Ali sentimos o contemplativo que nos convida a viver nossa vida como ela é. E sabemos que o “hoje” em Tibirine não foi sempre fácil. Foi até mesmo extremamente penoso, trágico, e até ao fim sob pressão dos acontecimentos. Então, podemos receber essas palavras com sua história como pano de fundo, que nos atesta que só há poesia e mística em seus escritos e em sua experiência. Existe um realismo e um segredo espiritual ali, para nos fazer atravessar toda a nossa existência, com todo o seu peso de alegrias e sofrimentos. Existe ali uma vitalidade que pode nos atingir a qualquer momento em nossa leitura da Palavra: é o Espírito Santo. Irmão Cristiano nos explica...

“O Espírito Santo é a vida de Deus. Ele é a vida do Verbo. É Ele, então, que “dá vida” à Palavra de Deus... que mantém a vida desta linguagem humana confiada à fé da Igreja para que ela descubra incessantemente o falar de Deus. Como qualquer vida, esta é feita para ser dada, para ser recebida, para ser vivida. Depende de nós que esta Palavra seja para nós, e no mundo de hoje “Palavra de vida” ou, ao contrário, ‘letra morta’.”

Quanto mais lemos a Palavra, mais nos familiarizamos com a maneira de falar de Deus. Sabemos que Ele fala de múltiplas maneiras na Bíblia. Portanto, cabe a nós escolher entrar em conivência com o “falar de Deus” para que esta Palavra se torne exatamente a palavra de vida que os outros esperam, porque necessitam dela. Esta é a nossa missão: oferecer aquilo de que os outros precisam. E Deus conta conosco para fazer isso.

Mais uma vez um certo realismo nos será oferecido nestas linhas do prior de Tibirine:

“A volta à Palavra é onerosa. Ela implica uma ‘lectio’, ou seja, acolhimento do Espírito Santo com, no começo, esta atitude de pobreza, de escuta, de silêncio interior que é a única que pode fazer 'desta' Palavra a nossa 'vida' de hoje. Irmão Henrique [Vergès[11]] dizia ao irmão Michel: o que esperamos do senhor são textos, palavras que foram meditadas (seja os Salmos, as leituras, as intenções do Ofício, as introduções ou as homilias na missa). Isso também significa que se é legítimo confiar no que os outros escreveram, pregaram, pensaram sobre os textos que necessitamos comentar (e não me privo disso), é preciso sempre, para que nossa palavra seja viva e dê vida, que ela seja o fruto de nossa própria experiência, que se misture ali alguma coisa de nosso próprio sangue”[12].

Poderíamos pensar que esta reflexão diz respeito apenas aos padres, mas, de fato, já que devemos “apresentar nossa vida para os outros LEREM”, toda a nossa vida pode tornar-se uma pregação, sob a ação do Espírito Santo. No entanto, há muitas condições para que este seja efetivamente o caso.

Primeiro, realmente acolher o Espírito Santo em nós, acreditar em sua ação. Porque o desafio é que nos tornemos palavra de vida para os outros. E para isto é preciso que algo de nosso próprio sangue se misture à nossa palavra. Para escapar das palavras vazias precisamos deixar o Espírito Santo apoderar-se de nossa vida e consentir que a Palavra nos conduza aos lugares que necessitam de conversão, não visitados por nós mesmos, para que a força do amor se manifeste em nossa fraqueza. Há, portanto, no Espírito, esta força capaz de nos colocar no caminho, de nos colocar na vida e, assim, nos colocar em alerta diante da palavra do outro.


A escuta recíproca

Isto nos leva à segunda dimensão da escuta: a escuta recíproca. Retomemos o fio de nossa reflexão com o Papa Francisco:

“O Espírito Santo, em sua liberdade, não conhece fronteiras e, também, não se deixa limitar pelas filiações [...]. O Espírito Santo precisa de nós. Escute-O, escutando-se mutuamente”[13].

Poderíamos ser tentados a dizer que, em vez disso, é uma visão horizontal, mas é o contrário: é uma visão teologal de nossas relações. Quando recebemos o Espírito Santo na Palavra de Deus, nossos ouvidos e nossos corações se abrem e se conjugam para escutar mais amplamente e fazer “leitura divina” dos outros, que por sua vez se tornam, para nós, uma palavra da parte de Deus.

“Todos podem participar desse esforço de tradução contínua da Palavra [...]. Jamais tiraremos uma foto do Espírito Santo. Na diversidade de nossos temperamentos e de nossas culturas, cada um de nós tem algo a dizer sobre esta Palavra que é nossa vida”[14].

Isto é o que estamos tentando viver como cristãos: uma tradução contínua da Palavra. Irmão Cristiano tem outra bela fórmula para dizer o que é a Igreja: “A Igreja é a encarnação contínua”. Isto é lindo! Façamos para que a encarnação continue sendo verdadeira, em nós e entre nós. Isto é sério e importante. Façamos para que a encarnação continue sendo verdadeira, em nós e entre nós. Isto é sério e importante. Façamos para que a encarnação continue sendo verdadeira, em nós e entre nós. Então, coloquemo-nos muitas vezes diante deste convite. Mas, jamais percamos de vista, para não sermos vencidos, porque é o Espírito Santo que é o agente de nossas boas relações!

Para que essa tradução seja ativa, temos que alargar muito a nossa atenção para entrarmos nesta riqueza do Espírito Santo que fala em cada um de nós. Não deixar ninguém de lado: isto começa a se tornar difícil porque temos tendências – muito naturais – a nos retrairmos, quando não nos reconhecemos verdadeiramente no que é dito pelos outros. Nesse esforço de tradução – que é um processo -, o essencial é conservar sempre no coração o desejo de estar junto dessa Palavra, de estar pessoalmente e junto aderindo a essa Palavra de vida e, então, em conversão perpétua, em escuta dessa diferença que nos obriga e nos mover através do outro em direção ao Único.

“É pela bondade que o homem é chamado a dominar o universo, mas desviando- se do bem, ele cedeu à tentação da ilusão e da força. E a confissão da bondade de Deus reflete-se no acolhimento do semelhante: Esta é a carne da minha carne... Deus necessita de minha conversão ao outro para continuar a criar-me livremente à sua imagem, homem e mulher, de geração em geração”[15].

Este trecho do Capítulo é muito importante, pois ressalta o critério de boa saúde de nossas comunidades, que é exatamente “o acolhimento do semelhante”. No fundo, quanto mais acolhedor eu sou, mais acolhedoras são as nossas comunidades, e mais estamos nesta confissão da bondade de Deus, e vice-versa. A saúde espiritual é isto. Ela implica uma conversão permanente ao outro. Que exigência! Tibirine era uma pequena comunidade... menos de dez irmãos, então: impossível fugir! Aliás, diziam que esta comunidade seria “impossível”, com temperamentos fortes, origens sociais diferentes, teologias diferentes, opções diferentes... e, no entanto, juntaram forças, formaram uma comunidade... e que comunidade! Então, tudo é possível na força, na adesão que o Espírito Santo nos oferece para entrarmos na conversão permanente aos outros. O prior de Tibirine tem uma bela maneira de expressar isso:

“O que buscamos entre nós, em nossas comunidades, não está à flor da pele, nem mesmo do coração. Acabamos sabendo que isso nos mantém profundamente!

Assim, a contemplação só é possível onde há abertura à comunidade de vida, a toda a família humana...

E só há comunidade possível onde houver abertura à contemplação das maravilhas de Deus escondidas em cada um, sinais do Único que estão escritos em nossos rostos como tantas diferenças prometidas à comunhão dos santos.

Mesmo que ainda seja necessário isso, por pouco tempo, é difícil a gente enxergar”[16].

Que lucidez! Claro, isso não é fácil de ver! O olhar contemplativo ao qual Cristiano nos convida, pode salvar-nos de muitas coisas. Evidentemente ele vai além do olhar superficial, ou de uma reação epidérmica. Vamos bem mais profundamente, na raiz do que permite considerar o outro, vê-lo na luz de sua mais verdadeira identidade.

“Porque somos todos feitos de carne e de sangue, nos tornaremos todos membros do corpo de Cristo. O Verbo se faz carne em cada um de nós, isto é, todo irmão segundo a carne pode tornar-se Palavra de Deus para mim”[17].

Esta citação desafia-nos, e o que ela aponta, deve ainda poder fazer uma viagem dentro de nós: isto exige acreditar nela. Acreditar que há crescimento, que as coisas andam. Isso significa que você não pode congelar ninguém, não pode enquadrar ninguém: o outro tem sempre a capacidade de crescer, de ser até maior do que a imagem que tenho dele agora. E isso é uma boa notícia: “Todo irmão segundo a carne pode tornar-se Palavra de Deus para mim, lembrava irmão Cristiano, com razão. No entanto, seu realismo ainda se junta a nós neste novo trecho:

“Não se surpreenda que a Palavra seja difícil de aceitar e que ela nos leve sempre mais longe, além de nossas margens ou dos nossos pontos e apoio. Chegará o dia em que, parando de atolar na lama, aceitaremos em cair definitivamente, e isso será a vida.

Não se surpreenda que o outro tenha uma palavra a nos transmitir e se tornar, em nome de Deus, junto de mim. Se acolho esta palavra que é vida, para ele, eu me exponho a descobrir nela um eco do Verbo único e eterno. Comunhão profunda entre dois seres, quando se tornaram verdadeiramente nutritivos um para o outro, e estão inclinados a ficarem juntos em silêncio, porque a palavra que os une é espírito e vida, e Presença real e inexprimível.

Também não se surpreenda que este irmão seja uma Palavra difícil de entender e que seja preciso superar muitos murmúrios internos ou externos antes que seja criado entre nós o clima de amor que lhe permitirá entregar-se ao que há de melhor e de eterno”[18].

Quando nos arriscamos a seguir o Evangelho, até em sua radicalidade, devemos estar à espera de uma viagem, para largarmos as amarras, longe de nossas zonas de conforto. Este é também um tema caro ao Papa Francisco. As periferias não são apenas as periferias externas; existem nossas próprias periferias internas. É preciso igualmente ir encontrá-las. Preparemo-nos, então, para uma viagem, para irmos escutar até ao fim os ecos do Verbo. O Vaticano II nos ofereceu uma fórmula interessante. Os Padres conciliares falavam das “Sementes do Verbo”, escondidas, entregues à nossa escuta. Precisamos redescobri-las em todas as coisas, em toda pessoa.

Mas temos que reconhecer que não vemos imediatamente nosso irmão, nossa irmã, como uma Palavra de Deus. Os murmúrios internos, mesmo se não sejam verbalizados, existem no mais profundo de nós mesmos, e não devemos nos entregar a isso, mas realmente perseverar para contribuir com o clima de amor. Irmão Cristóvão tem uma bela maneira de formular o desejo que pode nos inspirar: “Gostaria de juntar-me a essa terra pacificada onde rezo o Nosso Pai, sem esquecer ninguém”.

Talvez isso possa nos convidar a entrar nessa benevolência que nos permitirá ver, discernir no outro, o que ele tem de melhor e eterno. Aqui, também, a maneira monástica de vive-la, é esclarecedora:

“A escuta recíproca é um justo equilíbrio entre palavra e silêncio [...]. Porque a palavra é também um valor monástico [não a tagarelice nem a palavra barulhenta].

Sou “cristão”, “cordial” o suficiente, com cada irmão? Isto não exclui as tensões, as divergências, os pontos de vista. Meu irmão é sempre maior do que eu imagino. Na pior das hipóteses ele vale muito mais do que a ideia que ele tem de mim!

Tenho a coragem da correção fraterna evangélica: vá procurar seu irmão... ganhe- -o (Mt 18,15ss).

Qual é o teor da palavra, a coloração das palavras que penso (sem dizer forçosamente que habitam em mim ?”[19]

O que jogamos na atmosfera, com nossos pensamentos, com nossas palavras...?

Quanto à correção fraterna, é difícil e, raramente, falamos dela... ela desagrada, mesmo. Sou o guardião do meu irmão? Sim, somos o guardião do nosso irmão, de nossa irmã. Resta encontrar o clima de amor interior, a terra pacificada que nos permitirá encontrar a atitude e a palavra certas. Exercício difícil, mas que não deve se abandonado. No fundo, o maior realismo para o cristão é o da esperança:

“Assumir a esperança será experimentar a ressurreição na ação em todas as realidades humanas, mesmo as mais opacas, mesmo aquelas pelas quais aparentemente passamos. [...].

Em todo lugar, onde o diálogo ocorre para dar origem a uma linguagem nova.

Em todo lugar, onde o medo é levado firmemente, desarmado, como encantamos uma serpente.

Em todo lugar, onde cobras e palavras venenosas são engolidas, sem que sejam modificadas as razões profundas que, mesmo assim, temos que amar.

Em todo lugar em que a doença se torna um lugar de encontro, de partilha, de solicitude, lugar de purificação, lugar de um SIM à saúde de Deus”.[20]

Experimentar a ressurreição pode ser um belo convite: a ressurreição está operando em minha vida? Onde a vejo ganhar terreno em mim? Irmão Cristiano nos dá alguns elementos como resposta: em todo lugar onde há diálogo, então, em todo lugar onde podemos dialogar mais, haverá mais comunidade, haverá mais vida, mais ressurreição; em todo lugar onde o medo cede terreno, onde o encaramos, o desarmamos. Não é mais ele que assume, somos nós que o sufocamos e, então, a vida pode recomeçar. O que nos governa? O contrário do medo não é a coragem, é a confiança... Acampados no terreno da confiança, podemos, então, resistir em outro nível: o da palavra.

E em todo lugar onde as cobras e as palavras venenosas são engolidas – elas estão em toda parte! -; como desarmamos isso? Bem: amando mesmo assim. O abade Pedro tinha essa fórmula recorrente: “Amar mesmo assim... apesar de tudo”. Acima de tudo, não abandone esta missão de amar mesmo assim. Isso nos mantém saudáveis espiritualmente, e é um sim franco e maciço à saúde de Deus em nós, como uma esperança obstinada. Irmão Cristiano desenvolve muito este aspecto da esperança em suas diversas comunicações:

“Definitivamente, este é o plano da esperança que abrange todos os outros, e podemos considerar a paciência como a expressão cotidiana, como, de alguma forma, a encarnação da ‘pequena esperança’. E quanto mais for assim, mais paciência você terá para se dedicar! Não é de admirar, então, que a vida religiosa no seu conjunto, colocada na órbita da esperança do Reino vindouro, seja o crisol por excelência das mais variadas e refinadas paciências. Paulo VI afirmava nas entrelinhas, quando definia a caridade na vida comunitária (Evangelica Testificatio 39) como esperança ativa do que os outros podem tornar-se, com a ajuda do nosso apoio fraterno. ‘O sinal da verdade é encontrado na feliz simplicidade com que todos se esforçam para compreenderem o que importa a cada um’.”[21]

Entramos aqui no “núcleo duro” do que é a escuta recíproca: tentar ir ao encontro do que importa a cada um. Estamos longe da “epiderme”! Devemos cavar a Palavra de Deus que é meu irmão, minha irmã; desejar profundamente encontrá-los, e ali ajudá- -los também a se descobrirem e a se tornarem sempre mais irmão, irmã. Temos parte ativa nesse crescimento, como guardião. Este é o nosso trabalho de esperança em nós mesmos, mas também no outro - nunca renunciar de ser verdadeiramente irmão, verdadeiramente irmã -: permanecer no clima de amor, de esperança, de caridade e sentir a comunidade crescer em si e ao redor de si.


A escuta dos acontecimentos

Quanto mais crescemos na escuta da Palavra de Deus que nos transforma, mais ela nos ajuda a encontrar e a ver o outro, como uma palavra para nós. Bem mais: a escuta se faz extensiva, abraça a totalidade do real e tudo que nos acontece. Assim, progressivamente, são também os acontecimentos que se tornam uma palavra significativa para nós e para nosso caminho para Deus.

Escutemos novamente o Papa Francisco:

“É preciso sair dos 3-4% que representam os mais próximos, e ir mais longe para escutar os outros que, às vezes, lhe insultarão, lhe expulsarão, mas é preciso escutar o que eles pensam, sem querer impor nossas coisas: deixe o Espírito nos falar”.[22]

É interessante... Ficar nos 3-4% que nos cercam e que nos são próximos, é realmente privar-nos de uma grande parte do real... A ideia defendida pelo Papa é, então, ir encontrar os 96% que nos faltam – as famosas periferias – com a consciência real de que sentimos profundamente a falta desses outros. Isto nos ajuda igualmente a compreender a dimensão essencial da Igreja: a catolicidade.

“Não podemos compreender a ‘catolicidade’ sem nos referirmos a este campo amplo e hospitaleiro, que nunca marca as fronteiras. Ser Igreja é uma maneira de entrar na grandeza de Deus”.[23]

Este é um pensamento muito sedutor: ser Igreja é “entrar na grandeza de Deus”! É necessário flexibilidade, saber esticar, levantar e acolher Deus como Ele é: maior do que nosso coração. Uma nova citação nos permite perceber a maneira pela qual a comunidade de Tibirine viveu isto:

“Certamente você teria notado que ele [Monsenhor Teissier] falou o significado da nossa presença se ela passasse por essa crise dolorosa “em seu ambiente”. A menção de nossa vizinhança é justa: não podemos ser sinal de um dom se eles não estão ali para acolhê-lo, para desejá-lo. Melhor... Não podemos pretender dar Jesus a eles, de alguma forma, sem receber Jesus deles, de alguma forma. Isto também faz parte do próprio condicionamento da encarnação. Há interdependência. Muitos não receberam Jesus... mas aos que O receberam, Ele concedeu se tornarem o que Ele mesmo era, não apenas cristãos, mas bem melhor do que isto, filhos de Deus”[24].

“Entrar na grandeza de Deus” significa que não somos “cristãos”, “muçulmanos”, “budistas”... somos em última análise, essencialmente, “filhos de Deus”. E ali, há apenas um acampamento: o dos amados de Deus. Voltamos à perspectiva da escuta recíproca. Devemos ser capazes de receber a vida de Deus de todos os outros, dos 96% que nos esperam no exterior de nosso ciclo de proximidade.

Então, o que isso deu de muito concreto para a história dos monges de Tibirine? Anualmente, na carta circular dirigida aos pais, amigos e próximos da comunidade, podemos colher algumas das “audácias”, fruto da escuta do ambiente, que os levou a viver coisas, às vezes, surpreendentes.

“E aqui estamos no capítulo numa votação um tanto revolucionária. Trata-se de oferecer dois cômodos de um edifício, quase desocupado, às Irmãzinhas de Jesus, que procuram um lugar de descanso e de oração, propício e seguro para a fraternidade, em que as Irmãzinhas da região, particularmente as do Saara, poderão recuperar suas forças, durante o tempo de calor muito forte. Nosso recinto se torna misto, é certo, mas sua vocação contemplativa é, assim, multiplicada por dois (pelo menos!). Consultado, o cardeal foi categórico: esta á a melhor solução. Evidentemente, há cinco anos eu teria dito a você... (?). Não! Há cinco anos você não teria nem mesmo pensado em apresentar tal questão! E isto é verdade, obviamente”[25].

Estamos em 1977, no meio muçulmano... uma comunidade contemplativa de homens, que abre espaço no interior da clausura, numa ala de um de seus edifícios, para acolher as Irmãzinhas de Jesus... Há um momento favorável, uma escuta do Espírito que torna as coisas maduras.

Segundo exemplo:

“O Ribât (vínculo da Paz), há dez anos segue seu caminho unindo cristãos que querem estar diretamente atentos às dimensões espirituais da vida dos muçulmanos e integrando em sua abordagem de oração nossos irmãos de Alawiyyines de Medeia. Na primavera, nos perguntamos: “Como a vida espiritual do outro me desafia na minha?”[26]

Este grupo, o Ribât, era originalmente um grupo de cristãos que queriam compartilhar sua experiência do cotidiano vivido com os muçulmanos. Logo, eles se juntaram aos muçulmanos. Eles se reuniam duas vezes por ano, com uma questão para trabalhar pessoalmente com a finalidade de compartilhamento, durante os seis meses que não estavam juntos. Naquele ano, a pergunta era: “Como a vida espiritual do outro me desafia na minha”? Em seguida, passavam dois dias juntos compartilhando o fruto de sua experiência e da escuta profunda do seu cotidiano. Bela fecundidade no Espírito!

Novas realizações...

“… Oferecemos uma grande sala (ex-sala de espera do referido PMI) aos nossos vizinhos como sala de oração, enquanto aguardamos a construção de uma mesquita prevista para o lugarejo. Assim, nossas orações coabitam há seis meses no mesmo recinto, e muitos de nós pensamos, de ambos os lados, que elas também mesclam bem no coração de Deus.

Desenvolvemos também a experiência de associação na exploração de parte do jardim “fora dos muros”. Quatro jovens pais de família compartilham conosco o trabalho e a venda de produtos de horticultura”[27].

Também aí, uma originalidade: o acolhimento dos vizinhos muçulmanos para que venham rezar enquanto esperam a construção da mesquita do lugarejo. Esta é uma solidariedade bastante notável na oração e na partilha. A solidariedade também no trabalho, com a igualdade concretizada na parceria. Esta é uma forma original quando pensamos que normalmente as comunidades monásticas asseguram, antes, os serviços dos assalariados...

Essa escuta do Espírito ainda virá para apressar os irmãos em outro registro:

“O que Berdine pede? A presença no meio deles de um homem de oração (“monge”) para confirmá-los e apoiá-los no desejo de se afastarem definitivamente da espiral das drogas, do álcool, da deriva... e, também, para compreendê-los em suas quedas, em suas recaídas, em seus desejos e sua sede secreta. Padre João da Cruz ajudou a iniciar esta comunidade em 1972 como abade de Aiguebelle. Ele não cessou de acreditar nisso. Foi ele que nos pediu, e em tempo integral. E nós, também fomos responsáveis por um chamado da Igreja que se apresenta de outra forma. E o nosso irmão só partiu ao envio, em obediência... Um longo discernimento, resultando num emparelhamento acordado aqui e ali, na fé, talvez simplesmente porque, aqui e ali, a oração e o trabalho sejam os dois pulmões insubstituíveis da fidelidade à Vida (ora et labora)!”[28]

O Redil de Berdine é uma comunidade no Sudeste da França que acolhe aqueles que ninguém mais quer acolher: drogados, alcoólatras, pessoas desagregadas... Esta comunidade pedia, então, que um dos monges de Tibirine se juntassem a eles em tempo integral. Como conciliar isso com a vocação monástica? Mais uma vez, a criatividade do Espírito levou-os a imaginar a fórmula de um emparelhamento, enviando o monge solicitado durante os dois meses de verão a Berdine com, reciprocamente, estadas de moradores de Berdine que também vinham a Tibirine para passar um tempo com a comunidade. A demanda unilateral se transformou em troca. Esta é uma ilustração perfeita de tudo que evocamos anteriormente: arriscamo-nos à escuta das necessidades dos outros e inventamos...

Um último exemplo é retirado da carta circular de 1992, dirigida aos pais, amigos e próximos da comunidade. Foi o início do que foi chamado de “década negra”, ou seja, o início das violências na Argélia que levou ao assassinato de dezenas de milhares de argelinos e religiosos beatificados que se recusaram a deixar o país.

“Em uma recente meditação, Mons. Teissier evoca Maria aos pés da cruz: ‘Quando o povo sofre, já é muito estar ali, para suportar juntos este sofrimento agora. Não devemos esperar para fazer algo, até que sejam superados os difíceis acontecimentos pelos quais estamos passando... É também nesse momento que Jesus supera seu sofrimento e o grito de desesperança, com um pequeno gesto de afeição filial e de amizade fraterna: - Aqui está sua mãe... aqui está seu filho -! Este é o pequeno gesto de ternura humana. Aparentemente não está no nível do drama..., entretanto, anuncia e prepara o futuro’. Nesse contexto, concordamos em participar do Conselho Presbiteral e, também, em acolher e conduzir um retiro para os padres da diocese (liderado pelo bispo)”[29].

Termino de propósito com este exemplo e, finalmente, com esta pergunta que nunca deixou de acompanhar os irmãos de Tibirine até ao seu sequestro: que ternura humana podemos oferecer nas atuais circunstâncias? Esta pergunta está bem ao nosso alcance. Ela não para de nos solicitar. Para qualificar a nossa presença cristã, a palavra “ternura” não seria tomada sobre si, consigo, como uma busca permanente? O que podemos jogar na atmosfera hoje, senão esta ternura que toca, que vai ao coração, sem muitas palavras, mas que diz o essencial?


Rumo a uma escuta completa

Concluamos... O que lemos, ouvimos, esboçamos por intermédio da comunidade Tibirine?

Abordamos o que vislumbramos ser uma lectio completa. Estes monges nos ensinam o que é uma escuta completa que tem a sua origem no acolhimento amplo, franco e obstinado da Palavra de Deus. Um acolhimento determinado da Palavra que aumenta a escuta recíproca entre nós, e nos faz entrar numa capacidade mais ampla de escutar toda a vida, acontecimentos, contexto, e assim reassumir tudo o que nos acontece à luz da presença de Deus em cada um de nós.

Esta escuta completa nos impulsiona a restaurar a criatividade do Espírito, aqui e agora. Isto é o que chamamos discernimento. O Papa Francisco, que é jesuíta, teria colocado imediatamente esta palavra. Apresentando-lhes o testemunho desta comunidade cisterciense-trapista cujo centro da vida é a lectio divina, vemos claramente o convite que nos é feito para redescobrir esta fonte em nossas comunidades cristãs. É uma herança para toda a Igreja e é ela que nos ajuda a viver ajustados aos desafios do nosso tempo.

Com o seu impulso e o seu convite dirigido a toda a Igreja para entrar na sinodalidade, o Papa Francisco põe no centro da nossa vida pessoal e eclesial esta escuta completa, este movimento profundo para entrarmos juntos “na grandeza de Deus”. Movimento extensivo, de abertura, que é o movimento da cruz, movimento de Cristo que, de braços abertos, nos chama incessantemente a este acolhimento franco, amplo, a ser oferecido a todos, a ser inventado todo hoje. A Palavra ainda e sempre quer produzir algo novo em nós. E este é o Espírito que está no comando para nos manter vivos… “até à morte, se necessário” (Irmão Cristóvão).


[1] Esta conferência foi pronunciada no quadro das festividades do 150º aniversário da paróquia de Vevey (Suiça), em 5 de maio de 2022. O texto foi adaptado para a publicação, mas o estilo oral foi conservado.

Marie-Dominique Minassian é uma teóloga suíça, professora na Universidade de Friburgo, especialista da herança espiritual dos monges de Tibirine, membro da Associação para a proteção dos escritos dos sete irmãos de Tibirine.

[2] Papa Francisco, Discurso na Diocese de Roma, reunido em assembleia diocesana, 18 de setembro de 2021.

[3] Papa Francisco, Discurso pela comemoração do 50º aniversário da instituição do sínodo dos bispos, sala Paulo VI, sábado, 17 de outubro de 2015.

[4] Papa Francisco, Fratelli tutti, 48.

[5] Irmão Cristiano, homilia do 3º domingo da Quaresma, 14 de março de 1982, O Outro que esperamos, p. 57.

[6] Irmão Cristiano, Capítulo de terça-feira, 2 de julho de 1991, Deus para cada dia, p. 373.

[7] Irmão Cristóvão, nota da lectio não datada, sobre Jo 8,31.

[8] Irmão Cristiano, Capítulo do sábado, 23 de novembro de 1991, Deus para cada dia, pp. 384-385.

[9] Irmão Cristiano, Capítulo de 6 de março de 1986, Deus para cada dia, pp. 106-107.

[10] Irmão Cristiano, Capítulo de quinta-feira, 18 de julho de 1991, Deus para cada dia, p. 376.

[11] Irmão marista, próximo da comunidade, e um dos primeiros religiosos assassinados em 8 de maio de 1994, com irmã Paul-Hélène.

[12] Irmão Cristiano, Capítulo de terça-feira, 14 de junho de 1994, comentário do CEC 1100, Deus para cada dia, pp. 490-491.

[13] Papa Francisco, Discurso à diocese de Roma reunida em assembleia diocesana, 18 de setembro de 2021.

[14] Irmão Cristiano, Capítulo de terça-feira, 14 de junho de 1994, comentário do CEC 1100, Deus para cada dia, p. 491.

[15] Irmão Cristiano, Capítulo de quarta-feira, 23 de julho de 1986, Deus para cada dia, pp. 138-139.

[16] Irmão Cristiano, Capítulo de terça-feira, 12 de março de 1996, Deus para cada dia, p. 549.

[17] Irmão Cristiano, homilia do 21º domingo do Tempo Comum, 22 de agosto de 1982, O outro que esperamos, p. 74.

[18] Ibid., p. 74.

[19] Irmão Cristiano, Capítulo de sábado, 10 de fevereiro de 1990, Deus para cada dia, p. 315.

[20] Irmão Cristiano, homilia para a Ascensão quinta-feira, 20 de maio de 1982, O outro que esperamos, pp. 67-68.

[21] Irmão Cristiano, Capítulo de segunda-feira, 9 de dezembro de 1985, Deus para cada dia, p. 80.

[22] Papa Francisco, Discurso à diocese de Roma reunida em assembleia diocesana, 18 de setembro de 2021.

[23] Papa Francisco, Discurso à diocese de Roma reunida em assembleia diocesana, 18 de setembro de 2021.

[24] Capítulo do irmão Cristiano, de terça-feira, 9 de fevereiro de 1995. “Nossa comunidade em seu ambiente”, Deus para cada dia, p. 516.

[25] Cristiano de Chergé, Crônica da esperança 13 (Natal de 1977)., 13 de dezembro de 1977, Felizes os que esperam, p. 411.

[26] Carta circular da comunidade Notre Dame de l’Atlas 1988, Felizes aqueles que esperam, p. 706.

[27] Carta circular da comunidade Notre Dame de l’Atlas 1988, Felizes aqueles que esperam, pp. 707-708.

[28] Carta circular da comunidade Notre Dame de l’Atlas 1990, Felizes aqueles que esperam, p. 719.

[29] Carta circular da comunidade Notre Dame de l’Atlas 1992, Felizes aqueles que esperam, p. 733.

Desafios da vida monástica beneditina na África Ocidental

6

Perspectivas

Irmã Thérèse-Benoît Kaboré, OSB

Priorado Notre-Dame de Koubri (Burkina Faso)

 

Desafios da vida monástica beneditina

na África Ocidental

 

Quando me foi pedido de fazer um resumo da minha tese de Doutorado para o Boletim, pensei nos desafios que a vida monástica encontra na África Ocidental, porque verdadeiras provocações. A meu ver, podem levar a uma reflexão e isso será bom para a vida monástica na África, especialmente na Africa Ocidental de língua francesa, pois os desafios convidam a ficar vigilantes e a trabalhar para os melhorar. De fato, se a vida monástica quer ir para a frente, tem de ser capaz de se interrogar e de se deixar interrogar. Gostaríamos de sublinhar nesta pequena contribuição, alguns problemas que os responsáveis das comunidades monásticas deviam olhar.


As vocações

Cada vez mais se fala da África como um celeiro de vocações na Igreja. Contudo, esta realidade não se verifica em todos os países da África, nem para vocações particulares, como a vida monástica, que aliás é muito pouco conhecida. De fato, o específico desta vida austera não atrai e a maioria daqueles que batem à porta do mosteiro, não perseveram. A realidade é que mais de cinquenta anos depois de serem fundados, a grande maioria tem apenas o número suficiente de membros para pensar numa fundação. Eis o que constata o padre André Ouédraogo, abade emérito de Koubri:

“Olhando o nosso mosteiro, São Bento de Koubri, que fez 50 anos de fundação em 11 de Julho 2013, entre 1963 e 2013 acolhemos o número considerável de candidatos, que queriam a vida monástica (…) Se todos tivessem ficado, teríamos feito várias fundações monásticas, tanto no país, como em outros países. Infelizmente, hoje dos candidatos recebidos quantos ficaram? Os outros mosteiros da nossa sub-região africana podem dizer o mesmo. Diante deste mistério, muitos candidatos entraram, mas poucos ficaram.”[2]

É verdade que a vida monástica, como caminho do Evangelho, comporta renúnicas e exigências que é preciso assumir e escolher. No entanto esta realidade do grande número de partidas, deve interpelar os mosteiros sobre o modo como vivem a vida monástica, e como a apresentam no exterior. Se se trata de promover uma vida monástica mitigada, é necessário fazer uma reflexão séria para encontrar soluções adequadas para a questão. Disso depende o futuro da vida monástica na África Ocidental. Depois de 50 anos de fundação, vários mosteiros estão ainda patinhando.


Capela das monjas beneditinas de Koubri. © AIM.

A questão da formação na vida monástica

Embora hoje o nível de formação dos candidatos tenha evoluído, ainda há algo a fazer, pois um certo número vem com carências, que exigem um complemento de instrução escolar. Se o monge é um contemplativo por vocação, não está dispensado de alimentar sua inteligência com conhecimentos, nem de aprender a pensar. O verdadeiro problema é enraizar-se na vida monástica. Como dizia o padre Denis Martin, um dos grandes promotores da vida monástica beneditina na África: “ os professos perpétuos, que não tiveram o menor nível de instrução, boiam como se não tivessem nada sobre que apoiar a vida monástica”.[3] Isto é válido ainda hoje. É necessário reconhecer que o equilíbrio da vida de um mosteiro é ilusório, sem uma séria promoção de formação, não só religiosa, mas também humana dos monges, sobretudo diante de um mundo em perpétua mudança. Não se trata só de formação inicial, mas igualmente de formação permanente.


Os desafios ligados aos votos religiosos

O monge africano assume conscientemente e livremente ter de testemunhar Jesus Cristo com toda a sua vida. Sua consagração monástica é uma imolação pessoal. Por amor a Cristo, aceita sacrificar os valores culturais, que correspondem aos três conselhos: castidade – pobreza – obediência.

            O desafio do voto de castidade

O voto de castidade é a expressão da pobreza mais fundamental para o religioso africano; este voto toca-o nas suas representações simbólicas essenciais. Um cisterciense congolês exclamava, falando desta escolha evangélica do celibato consagrado: “É uma vitória do cristianismo em nosso meio; e não é um milagre pequeno!” Uma tal situação, contudo, não é sinónimo de incapacidade, por parte dos religiosos africanos, de viverem plenamente a castidade. Não significa aceitação de uma vida sexual desordenada.[6] Para os religiosos africanos, co o para os outros no resto do mundo, há a exigência de assumir, na verdade, aquilo a que se engajaram livremente. Não há meias medidas para os religiosos africanos. A prática da castidade por causa do reino de Deus, deve ser um testemunho concreto igualmente contra “uma cultura hedonista que liberta a sexualidade de toda a norma moral objetiva, reduzindo-a muitas vezes a um jogo, ou a um bem de consumo, e cedendo a uma espécie de idolatria do instinto” (Vita Consecrata 88). Se o voto de castidade não dá a possibilidade de viver como seres incorpóreos, então o voto de castidade é um desafio, uma interpelação para aquele que o faz.

            O desafio do voto de pobreza

Num continente em que uma grande parte da população é sub alimentada, tem falta de moradia decente e não tem acesso aos serviços de saúde, ou outros bens gratuitos noutros lugares do mundo, o religioso não pode não levar a sério o seu voto de pobreza. Então como é que os religiosos e mais ainda os monges devem viver a pobreza? As pessoas que vivem na proximidade dos mosteiros devem poder compreender que os monges vivem seu voto de pobreza com a renúncia radical ao direito de propriedade individual, e ao uso pessoal dos lucros de seu trabalho, e também partilhando praticamente seus bens com os outros. Em todo o caso esta interpelação de uma de nossas anciãs na vida monástica na África, nos interroga a todos: “Que nossos irmãos não possam dizer de nós, vendo-nos lidar com as coisas: como eles são agarrados ao dinheiro!” Ou ainda, que não façam nunca a reflexão de uma religiosa sobre uma co-irmã: “Ela pensa em ganhar dinheiro, antes de pensar na salvação das almas”.[7].

O desafio do voto de obediência

Eis o que constatou o professor Michael Hochschild depois de uma pesquisa a vários mosteiros europeus: “Um observador de fora gostaria de encontrar humildade e obediência na vida monástica, mas na realidade, a maior parte das vezes o que se vê é autonomia individual e auto realização”.[8] Esta constatação pode aplicar-se também à realidade dos mosteiros na África, e mais especialmente na África Ocidental. O individualismo instala-se, abafa a dimensão do testemunho profético, ligado ao voto de obediência, como aos outros dois votos. No entanto deve-se chegar a conciliar o dinamismo, o sentido da responsabilidade, o espírito de iniciativa com o espírito da obediência. Tem que se chegar a uma obediência cristã madura, despossuída de vontade própria, não temerosa, nem servil ou hipócrita, ou com reservas para o futuro, como por exemplo: “quando for professo perpétuo, poderei fazer o que quero”. Neste ponto de vista é importantíssimo que a formação monástica ajuda o candidato a chegar a uma obediência adulta, pensada e querida.


O desafio da vida fraterna

A vida fraterna é o terreno de combate dia a dia. Os desafios são múltiplos e os obstáculos não faltam. Uma das ameaças à vida fraterna e comunitária é o individualismo. Quando só se pensa em si e no seu trabalho, a vida comunitária depressa se torna secundária, e até obstáculo para o uso do tempo. De fato há monges que pensam que trabalham muito e duro, que prestam serviço aos outros. No entanto o que se vê na realidade? Não se interessam pelos outros, nem pela vida dos outros. Agindo assim a comunidade perde o élan vital, “a comunidade se desfaz e há cada vez menos interesse pela comunidade”[9]. Tem que se entender que a vida monástica cenobítica não pode ser entendida e vivida, sem se ter em conta as relações inter pessoais na comunidade. Podem ainda surgir outras dificuldades: dificuldades de comunicação às vezes ligadas à diferença de gerações, rivalidades, sede de dominar, falta de escuta e de acolhimento mútuo. Neste campo das relações interpessoais, a observação do dominicano Sidbe Semporé deve interpelar-nos: “As pessoas tomam-nos como exemplo, e quando se fala de santidade olham para nós espontaneamente. Mas será que somos cristãos de verdade?”[10].


A questão da autonomia económica nos Mosteiros da África Ocidental

Os mosteiros da Àfrica Ocidental continuam a dizer que para as necessidades da vida cotidiana, cada um (mosteiro) pode ser autónomo com seu trabalho, mas o problema vem quando há despesas excecionais, como por exemplo uma construção, ou a compra de materiais[11]. Há aqui um problema de organização e de formação a resolver. O monaquismo na África não pode pretender ser autónomo, negligenciando a questão económica. O projeto económico para o futuro dos mosteiros na África deve ser objeto de um estudo mais aprofundado. Muitas vezes se dá como modelo mosteiros europeus florescentes a nível económico. Seria interessante apresentar igualmente mosteiros com um nível económico reduzido, às vezes com dívidas, e que vivem com isso, e não estão sempre a pedir. Em todo o caso, hoje, não se pode contar com benfeitores, que seja a AIM ou outros organismos, ou pessoas para substituir máquinas, ou fazer uma construção. É importante que as comunidades saibam prever um orçamento, amortizações para poder substituir o que for preciso.

Atelier de tecelagem no mosteiro de Toffo (Benim). © AIM.

Falando de ajuda, os mosteiros da África receberam muitíssimo da AIM-Internacional. Hoje seria interessante pensar numa AIM-Africana, como queria o Padre Boniface Tiguila, fundador do Mosteiro da Encarnação de Agbang, no Togo, quando da sua intervenção na celebração do jubileu de Ouro da AIM em 2011. A Intenção não é substituir a AIM-Internacional. A nível do dar e receber os mosteiros africanos podem fazer algo. Internamente, na África, esta estrutura poderia dar sua contribuição, mesmo pequena, aos mosteiros que precisam (pensamos no dom da viúva). Os mosteiros da África não podem esperar ser florescentes para pôr em pé tal estrutura. Pensemos seriamente nisso. E esperamos que AIM-África existirá em breve!


Um modelo de mosteiro para a África

A África vive uma situação de pobreza que ninguém pode esconder. Em tais circunstâncias, um nível de vida austero pode parecer burguês. A riqueza, mesmo relativa, longe de ser entendida, vai ser exagerada pelas pessoas de fora. É necessário estar atento às condições de desenvolvimento de cada região e fazer tudo para que o testemunho coletivo de pobreza interpela a população (cf Perfectae Caritatis 13; Can 640). Se a vida monástica quer ser profética, tem de levar esta realidade a sério.

Neste sentido não seria bom repensar as fundações e o funcionamento dos mosteiros na África Ocidental? Não se poderá pensar a possibilidade de viver plenamente a vida monástica em pequenas comunidades? Será que toda a nova fundação tem de ser necessariamente chamada a tornar-se uma grande comunidade, para que se tenha a possibilidade de uma vida monástica autêntica? Ao lado dos grandes mosteiros de tipo clássico, não haveria lugar para opções mais leves, comunidades mais pequenas com uma perspetiva de investimento e de crescimento limitado? Estas perguntas já foram muito bem colocadas no primeiro encontro dos superiores monásticos da África, que se reuniu em Bouaké em 1964[12].

Uma tal perspetiva exige uma reflexão séria, e também experiências audaciosas. Pequenas comunidades monásticas próximas das aldeias, com o mesmo nível de vida e casas idênticas, tanto quanto possível, poderia deixar transparecer o verdadeiro rosto do monaquismo e fim que procura. Com uma moradia menos impressionante e um género de vida mais simples, estas pequenas comunidades poderiam dar o testemunho efetivo de uma verdadeira pobreza, que seria aos olhos de todos que os vissem viver, o sinal mais sensível da caducidade das coisas da terra. Como comunidades de oração e de trabalho poderiam ter uma grande irradiação ao meio das populações à volta.


As relações do monge africano com sua família

Diante da família biológica, as pessoas consagradas africanas vivem alegrias e dores na procura de uma harmonia que esteja de acordo com sua consagração. Embora tenham deixado tudo para seguir o Cristo, é verdade que os problemas da família lhes atingem, e lhes tocam. Assim, certos religiosos africanos, que vêm de famílias pobres, sofrem por viver numa situação melhor que a da família, que fica num estado primitivo, incapaz de chegar aos bens materiais. Por causa deste sofrimento, alguns deixam a vida religiosa, outros enganam, roubam para ajudar as famílias e outros não chegam nunca a se sentirem realizados. Os monges não são poupados a esta situação. Constata-se muitas vezes que depois de uma visita à família, certos irmãos ficam perturbados, não se sentem bem, por causa dos problemas e das dificuldades da família. É uma questão muito delicada, que merece uma atenção especial e uma resposta concreta. É verdade que a Regra não prevê nada neste sentido, mas não se pode ignorar tal situação, que na África, é um verdadeiro problema.


As exigências monásticas face à invasão do mundo atual

O mundo vive hoje uma mutação muito característica gerada pela globalização, que no seu conjunto dá uma visão do mundo em bloco. A globalização não toca só a economia, mas alarga-se para a cultura e cria uma espécie de cultura global, que não deixa ninguém indiferente. O novo contexto socio cultural gerado desta maneira exerceu uma influência imediata sobre a vida consagrada, e mais particularmente sobre a vida monástica. Certos comportamentos e usos que o monge sempre considerou essenciais são assim postos duramente à prova. Ao mesmo tempo que as oportunidades do mundo moderno prestam enormes serviços, são uma ameaça permanente para a clausura, e também para o silêncio tanto interior, como exterior. Poderíamos nos perguntar o que acontece com o silêncio monástico num mundo em que a comunicação super-rápida invade tudo? Como não se tornar dependente do computador, do WhatsApp, do Facebook… internet? Sem querer se fechar às riquezas e vantagens da globalização, é bom olhar com lucidez os problemas, que tudo isso causa. (cf Vita Consecrata 99)

O monge não pode negar, de modo nenhum, os valores essenciais e os usos e costumes importantes de seu género de vida. É preciso que esteja bem enraizado na sua vida monástica. É assim convidado a prestar contas de sua identidade, sendo realmente aquilo que é. Só assim a vida monástica será um testemunho das exigências do Reino de Deus e de sua presença no meio dos homens, e será capaz de interrogar o mundo atual.

Os diversos desafios mencionados ajudam a compreender a urgência de uma resposta eficaz, por parte dos monges e monjas da sub-região da África Ocidental, resposta que deve partir da maturidade dos monges e de seu enraizamento na vida monástica.

A África precisa de homens e de mulheres que sejam capazes de dar testemunho das Bem aventuranças e do primado do Absoluto até ao dom total. Esta espera só será cumulada na medida em que os monges se tornem sempre mais conscientes da riqueza da vocação, que o Senhor lhes deu, e portanto da missão que lhes é confiada na Igreja e no mundo. É preciso que reafirmem sem cessar seu carisma particular, esforcem-se por ter dele uma visão clara e a vivam cotidianamente. Então poderão dar a resposta que o nosso tempo espera, e poderão ser o que são.


[1] A Tese tem como título “Vida monástica e legislação canónica: a questão da identidade beneditina diante dos desafios atuais na África Ocidental.

[2] A. Ouédraogo, “Caminho para o acolhimento e o discernimento das vocações na vida monástica” em A. Ouédraogo – F. Ferrari “Si revera Deum quaerit” Linhas para o discernimento monástico, Mamma, Parma, 2018, p. 48.

[3] Cf. D. Martin, “Formação dos postulantes no mosteiro” em Rythmes du Monde nº 39, 1965, p. 61. O autor quer falar dos que não têm nenhuma formação escolar.

[4] Cf. G. Mbida, “Os votos religiosos no contexto cultural africano. Situação e desafios para um direito eclesial particular” na Revue de Droit Canonique nº 65, 2015, p. 208.

[5] E. Mununu, “Disposições interiores e estruturas de comunidade” em Rencontre monastique, 31; M. Defourd, “O desafio da vida religiosa hoje” em Pentecôte d’Afrique, 6 (1995), nº 2, p. 60.

[6] Cf. E. M’veng, “A Africa na Igreja, palavras de um fiel” L’Harmattan, Paris, 1985 p 109-110. Muitas vezes se afirmou que os Africanaos são incapazes de viver o voto de castidade . É verdade que a fecundidade é valorizada na África, mas é também verdade que na sociedade tradicional e ainda hoje, o domínio da sexualidade é um valor importante, que todos, homens e mulheres defendem. Dominar a sexualidade era uma das dimensões que media o grau de humanização (o homem não pode agir como um animal que não se controla). O conhecimento da cultura africana mostra que a promiscuidade sexual não é, de forma nenhuma, permitida. Desde jovem se aprende a viver a castidade.

[7] Uma Irmã africana, “Problemas económicos das fundações missionárias” em Rythmes du Monde nº 39, 1965, p. 103.

[8] M. Hochschild, “Os Beneditinos entre continuidade e mudança, intuições e perspetivas a partir de um projeto internacional de pesquisa”, Congresso dos Abades de 2012, p. 6 (documento policopiado).

[9] M. HOCHSCHILD, « Autonomie et communauté. Essai sur la précarité de la vie monastique d’aujourd’hui », in Bulletin de l’AIM, n° 46, 2013, p. 28.

[10]  S. Semporé, “A vida religiosa interpelada” Col. Pentecôte d’Afrique, s.e., Cotonou, 1995, p. 8-9.

[11]  Cf. Encontro dos superiores monásticos de língua francesa da Africa Ocidental. Relato da sessão de 20-26 de Janeiro de 2014 no Boletim da AIM nº 47, 2014, p. 89-90.

[12] Cf. D. MARTIN, “Problemas económicos das fundações missionárias. Relatos dos debates” em Rythmes du Monde nº 39 1965 p. 98-99; cf A. OUÉDRAOGO, Caminho, p. 99-100: este autor, que aprova a possibilidade de pequenas fraternidades ligadas a grandes comunidades, propõe igualmente a ideia de uma vida monástica por um tempo provisório. No entanto, como ele mesmo reconhece, essa experiência só pode ser possível em comunidades enraizadas na sua vida monástica.

O ecossistema monástico francês,

7

Economia e vida monástica

 Marie-Catherine Paquier[1]

 

O ecossistema monástico francês,

exemplo de rede cooperativa e solidária

 

Produzido pelos monges trapistas de Cîteaux.

O modelo monastico inspira empreendedores: ajuda mútua, cooperação, inovação coletiva, distribuição solidária, preço justo, ética de produtos e práticas, ecologia integral, sobriedade na comunicação, predileção por longos períodos de tempo na tomada de decisões, tais são as características que muitas marcas comerciais hoje efetivamente invejam, impulsionadas pelas recentes possibilidades de inscrever sua razão de ser em seus estatutos (Entreprise à Mission[2] e Entreprise Solidaire d’Utilité Sociale[3]). Mas afinal, porque a organização econômica praticada pelas e para as comunidades monásticas de hoje inspira as empresas clássicas, ainda que de forma fundamentalmente diferente, uma vez que o aumento do seu valor econômico e financeiro é para elas um fim em si mesmo? Na esteira de riquíssimos trabalhos históricos, sociológicos e econômicos[4] que tratam das atividades de produção e de comércio dos mosteiros ao longo do tempo, propomos aqui uma visão esclarecida sobre a organização do atual ecossistema monástico francês. Este ecossistema, que foi sendo construído pelos próprios mosteiros à medida que progrediam, hoje permite que atores monásticos e leigos trabalhem juntos. É de fato notável constatar que, por meio de questões econômicas, ordens monásticas, homens e mulheres, gerações e sensibilidades diversas, trabalham lado a lado, abrindo portas a diversas parcerias com leigos. Uma bela ilustração da economia como um terreno fértil para relacionamentos! Vejamos como os mosteiros de hoje organizam sua economia em rede, moldando suas escolhas econômicas em função de suas prioridades espirituais, e não o contrário.


Escolhas econômicas ditadas pela espiritualidade

A economia monástica permite aos monges e monjas ganhar a vida pelo trabalho sob o olhar de Deus. Fundamentada sobre a desapropriação de bens e encargos, essa economia singular, por vezes considerada como um laboratório de economia alternativa, encoraja cada um a contribuir de acordo com suas próprias possibilidades [5] De fato, a capacidade de trabalho depende do número de irmãos ou irmãs no mosteiro, de suas competências, e do tempo dedicado ao trabalho, em equilíbrio com os momentos de oração individual e coletiva. Recorde-se que o trabalho dos monges e monjas assume três formas, repartidas entre os serviços comunitários (limpeza, manutenção, cozinha, reparos...), a acolhida monástica na hospedaria (acolhida, escuta espiritual, limpeza e preparação dos quartos, serviço de refeições...) e o trabalho remunerado propriamente dito (oficinas de produção ou de serviços, lojas...). Interessa-nos aqui esta terceira forma de trabalho, dedicada quer à própria produção, quer à sua organização e controle caso seja for realizada por leigos assalariados ou subcontratados, quer ao comércio em lojas físicas ou online.

As atividades lucrativas dos mosteiros são, na maioria das vezes, reunidas em uma estrutura jurídica separada da comunidade, adaptada à atividade e que remunera o trabalho dos monges e monjas pelo valor de manutenção pago à comunidade. Dentro da comunidade, o trabalho lucrativo é muitas vezes gerido pelo Conselho Econômico, composto pelo abade ou abadessa, o ecônomo e os responsáveis pelas diversas atividades ou serviços. Para as grandes orientações e as decisões importantes como a criação de uma nova atividade, a distribuição de tarefas ou a disposição dos locais de trabalho, a comunidade não é apenas consultada, mas frequentemente associada na tomada de decisões. As gamas produzidas e comercializadas pelas comunidades monásticas incluem produtos agrícolas e alimentícios, cosméticos, artes decorativas, objetos religiosos, livros, e serviços diversos (impressão, costura, restauração de quadros, encadernação...), comercializados por meio de uma rede de distribuidores físicos e online, e que são tanto monásticos quanto laicos. Combinadas, as atividades produtivas e comerciais fornecem assim os subsídios necessários às necessidades da comunidade, em complemento das hospedagens de retiros quando existem, atividades hoteleiras e outras formas de rendimento. Frequentemente presos entre exigências econômicas e exigências religiosas e espirituais[6], os mosteiros praticam um marketing moderado, ou até mesmo um “des-marketing”[7] : vender, fabricar ou ganhar mais não é um fim em si mesmo, e muitas comunidades não hesitam em abrir mão de oportunidades comerciais para preservar sua prioridade espiritual.


A comunidade, membro ativo de uma rede cooperativa

Embora totalmente autônomas em suas escolhas e em seus finanças, as comunidades não permanecem isoladas umas das outras. A título de exemplo, para unir e coordenar os seus esforços, os mosteiros franceses criaram efetivamente quatro associações cujas ações se complementam e se alimentam: “Monastic”[8], para formação em questões econômicas e para atribuição da marca homônima, “Aide au Travail des Cloîtres” para apoiar a difusão de produtos monásticos através da marca “Artisanat Monastique”, “La Boutique de Théophile” para a criação de um site comercial colaborativo e “ Liens des Monastères pour le Commerce” para formação e troca de boas práticas sobre o tema de vendas e comércio. Estes quatro atores monásticos funcionam como base de apoio à economia dos mosteiros e são co-gerenciados por religiosos(as) e leigos.

Para além das ações coordenadas, existem aqui e ali muitos casos de cooperação entre comunidades, quer para a fabricação de produtos, quer para a sua comercialização (cada loja monástica vende não apenas os produtos de sua comunidade, mas revende uma gama mais ou menos vasta de produtos de outros mosteiros). A cooperação também assume a forma de uma verdadeira inteligência coletiva: assessoria uma comunidade no desenvolvimento de um novo produto ou vinculação de duas comunidades para a criação de produtos complementares. Além disso, a comercialização de produtos monásticos atrai revendedores leigos privados que, para alguns, formam verdadeiras parcerias duradouras, permitindo que as comunidades programem volumes substanciais de fabricação com bastante antecedência. Finalmente, a montante, as comunidades preocupam-se em estabelecer relações de fidelidade com os seus fornecedores, sempre que possível escolhidos pela proximidade e pela qualidade de seu trabalho. A economia monástica funciona, portanto, como um ecossistema colaborativo[9], até mesmo cooperativo[10], onde atores monásticos e leigos coproduzem não apenas valor econômico, mas também solidariedade humana e espiritual.


Os compradores e sua procura de autenticidade, motores da evolução econômica dos mosteiros

Ao lado dos compradores e consumidores de produtos monásticos, católicos fervorosos ou não, os produtos monásticos têm a priori muita confiança, compostos por uma aura de naturalidade, artesanato, tradição, sinceridade e espiritualidade. Ficou demonstrado que o apoio e a doação têm um papel importante no ato da compra[11], sobretudo quando esta ocorre num contexto próximo ao mosteiro, numa loja física ou na internet[12]. Habitados pelos arquétipos medievais do monge pioneiro e autárquico, os consumidores tendem a contar a si próprios uma história idealizada destes produtos e de seus processos de fabricação, mesmo que isso signifique deleitar-se numa visão que não reflete a realidade atual dos mosteiros[13]. Isso não é isento de perigo para o vínculo de confiança entre os mosteiros e seus clientes, e é importante acompanhar os consumidores em sua compreensão de novas formas de fazer mosteiros. Com efeito, o apelo à colaboração de leigos assalariados ou subcontratados não deve de forma alguma diminuir o controle que a comunidade tem sobre todo o ciclo de vida do produto, desde a sua concepção até à sua comercialização, passando pelas etapas de compra de matérias-primas, fabricação, embalagem e transporte.

As economias monásticas, inseridas no conjunto da sociedade, evoluíram do setor primário para o setor secundário e depois terciário, passando assim da agricultura e pecuária de subsistência para a produção de artesanato, depois para a prestação de serviços e ao comércio. Assim se têm desenvolvido cada vez mais os serviços, por vezes em detrimento do trabalho manual, mas preconizado pelas regras cenobíticas, das quais a mais conhecida é a regra de São Bento. Hoje, para muitas comunidades, principalmente as mais antigas, a loja é uma fonte de renda mais importante do que a produção artesanal. No entanto, como num pêndulo, constatamos desde há alguns anos uma tendência de regresso à manufatura e ao trabalho manual monástico, mesmo que isso implique o abandono de atividades terciárias que são muitas vezes hiper digitais (exceto a loja, que permanece essencial): reinvestir em oficinas e capacitar os monges em novas atividades artesanais. Essa reorientação da manufatura, que às vezes passa por novas formas de aliança com os leigos, está no centro da reflexão atual das comunidades.


As restrições que impulsionam a inovação

Finalmente, a economia monástica não é apenas a economia das necessidades (ganhar aquilo que se tem necessidade), mas também a economia das limitações: limitações de competências, de efetivos, de espaço, de tempo… Essas limitações, que abordaríamos na vida secular como restrições, são encarados pelas comunidades monásticas como espaços de liberdade e criação propícios a mudanças[14] e inovações[15]. De fato, para os mosteiros, o desafio é manter ou desenvolver atividades econômicas, conciliando a adaptação às tendências sociais atuais e a fidelidade aos fundamentos espirituais da vida cenobítica. Nesta economia “fechada” por estes limites, a procura de um equilíbrio entre os diferentes tempos, as diferentes atividades, os diferentes lugares, os diferentes ruídos são essenciais para “conseguir a melhor correspondência possível entre a razoável satisfação das necessidades dos indivíduos e do grupo, a mobilização racional da mão-de-obra e das competências humanas disponíveis para o local, e o serviço aos homens”[16]. Assim, as lógicas de produção e comercialização obedecem a uma tríplice negociação entre (1) as expectativas da clientela em busca de produtos naturais, autênticos e espirituais, (2) as estratégias econômicas singulares dos mosteiros, (3) a conciliação interna para permanecer fiel às prioridades espirituais e às justificativas religiosas do trabalho : como utilizar a internet e as redes sociais que se tornaram indispensáveis mantendo-se afastados do mundo, como satisfazer a todos os pedidos de revendedores sem prejudicar o equilíbrio espiritual, como e em que medida colaborar com os leigos, o que vender e o que não vender nas lojas, como preservar a solidariedade enquanto se multiplicam os sites comerciais online, como consolidar a confiança dos consumidores sendo ao mesmo tempo transparente a respeito das novas práticas, como colocar em prática os apelos à ecologia integral...? Tais questões animam hoje as reflexões do ecossistema monástico. Se as situações e questões são únicas a cada vez, as respostas dadas por uns e outros são sempre pertinentes e adaptadas, desde que resultem de uma reflexão comunitária em coerência com as restrições internas e externas. Há, portanto, tantas ideias e soluções quanto comunidades, sem modelo duplicável, em um estado de espírito confiante, permitindo que as escolhas espirituais comunitárias presidam às escolhas econômicas, e não o contrário.


[1] M.-C. PAQUIER, Doutora em Ciências da Administração, é professora-pesquisadora da EBS-Paris e pesquisadora associada na CNAM-Paris. Desde sua tese de doutorado, ela se interessou pelas atividades de manufatura e comércio dos mosteiros. Acompanha as comunidades, seus ecônomos e responsáveis de oficinas e lojas em suas mudanças, bem como as entidades monásticas que trabalham no apoio às atividades fabris e comerciais. Suas pesquisas são publicadas em várias revistas científicas.

O presente artigo, com a gentil autorização da “Fondation des Monastères”, é uma adaptação do artigo apresentado na Revista Les Amis des Monastères sob o título: “L’écosystème monastique français, Un exemple de réseau coopératif et solidaire”, ampliando a perspectiva ao conjunto da família beneditina no mundo.

[2] https://www.economie.gouv.fr/cedef/societe-mission

[3] https://www.economie.gouv.fr/entreprises/creer-entreprise-economie-sociale-et-solidaire-ess

[4] Por exemplo : DALARUN J. (2019), Modèle monastique - Un laboratoire de la modernité, éd. CNRS ; STARK R. (2007), Le triomphe de la raison. Pourquoi la réussite du modèle occidental est le fruit du christianisme ? Paris, Presses de la Renaissance ; BENOIT P. et BERTHIER K. (1996), « L’innovation dans l’exploitation de l’énergie hydraulique d’après le cas des monastères cisterciens de Bourgogne, Champagne et Franche-Comté », Actes des congrès de la Société d’archéologie médiévale, 6, p. 58-66 ; HERVIEU-LEGER D. (2017), Le temps des moines, clôture et hospitalité, Presses Universitaires de France ; JONVEAUX I. (2018), « L’organisation monastique, une entreprise comme une autre ? », Revue du droit des religions, (5), 23-38 ; HERVIEU-LEGER D. (2017), Le temps des moines, clôture et hospitalité, Presses Universitaires de France  ; JONVEAUX I. (2018), « L’organisation monastique, une entreprise comme une autre ? », Revue du droit des religions, (5), p. 23-38.

[5] PONS B.-J., L’économie monastique : une économie alternative pour notre temps, éd. Peuple libre, 2018. Ver também o boletim 122 da AIM.

[6] JONVEAUX I. et HERVIEU-LEGER D, Le monastère au travail : le royaume de Dieu au défi de l’économie, Bayard, 2011.

[7] LAWTHER S., HASTINGS G.-B., et LOWRY R., De-marketing: putting Kotler and Levy’s ideas into practice. Journal of Marketing Management, 13(4), 1997, p. 315-325.

[8] https://www.monastic-euro.org/

[9] MOORE J.-F., Predators and prey: a new ecology of competition. Harvard Business Review, 71(3), 1993, p. 75-86.

[10] LAURENT E. (2018), L’impasse collaborative. Pour une véritable économie de la coopération. Les liens qui libèrent : « La coopération vise un objectif qui dépasse l’utilité et l’efficacité, elle prend la forme d’une intelligence collective qui laisse émerger l’inattendu et le nouveau ».

[11] PAQUIER M., Buying monastic products, gift or purchase? Journal of Management, Spirituality and Religion, 12(3), 2015, p. 257-286.

[12] PAQUIER M. et MORIN-DELERM S., « Le contexte, un amplificateur d’expérience : le cas de l’achat de produits monastiques en points de vente religieux », Décisions Marketing (81), (2016, janvier-mars) p. 9-26.

[13] PAQUIER M. et MORIN-DELERM S., « Le silence monastique, ou les vertus de la sobriété en comunication », Revue Française de Gestion, 45(281), 2019, p. 91-104.

[14] Bulletin 119 de l’AIM, article d’Isabelle JONVEAUX, « L’économie monastique comme moteur du changement ».

[15] MORIN-DELERM S. et PAQUIER M., « Innover pour rester fidèle à la tradition, le cas de l’écosystème monastique français », Gestion 2000, 34(5), 2017, p. 293-313.

[16] HERVIEU-LEGER D., Le temps des moines, clôture et hospitalité, Presses Universitaires de France, 2017, p. 633

A liturgia siro-malabar

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Liturgia

Dom Clément Ettaniyil, OSB

Abade de Kappadu (Índia)

 

A liturgia siro-malabar

São Tomé, o Apóstolo da Índia, nosso Pai na fé

 

Em 52 D.C., São Tomé, o Apóstolo, chegou à costa de Malabar, em Kerala, no sul da Índia. Em 3 de julho de 72 d. C., São Tomé foi martirizado em Mylapur. O domingo de 3 de julho de 2022 marcou o 1950º aniversário do martírio de São Tomé. Neste ano jubilar da chegada de São Tomé, é bom refletir sobre a liturgia da Igreja siro-malabar.

A liturgia siro-malabar pertence à família litúrgica siríaca oriental que foi desenvolvida pelos discípulos de São Tomé. A missa de rito siro-malabar chama-se Qurbana que significa: oferenda, dádiva ou oblação. Qurbana resume todo o mistério da salvação em sua celebração da eucaristia. Existem três formas da Santa Missa na Igreja siro-malabar: a forma simples, a forma solene e a forma mais solene, Raza, que é o traço distintivo da liturgia siro-malabar. Se celebrado corretamente, são precisas duas horas e meia para completar o Raza.

A palavra Raza poderia também significar: “mistério”. A Raza é a celebração da Cruz, da Palavra de Deus e do Corpo e Sangue de Cristo que são três representações vivas de Nosso Senhor. Eles têm prioridade suprema em várias orações, hinos e rituais da Raza. O mistério da Cruz, da Palavra de Deus e do Corpo e Sangue de Cristo é completamente desvendado na Raza. A cruz sem a figura de Cristo significa o Senhor ressuscitado. “Ele não está aqui, mas ressuscitou” (Lucas 24, 5). A Pomba no alto da cruz significa a teologia paulina sobre o papel do Espírito Santo na Ressurreição. O lótus abaixo indica a tentativa dos cristãos de São Tomé de interpretar o significado da cruz no contexto indiano. O lótus, na cultura indiana, é o símbolo da pureza; é a nossa flor nacional. A cruz sobre o lótus explica como o cristianismo indiano está bem integrado no país. Os botões prestes a desabrochar nas quatro extremidades desta cruz da ressurreição significam a nova vida e a esperança do Senhor ressuscitado. A cruz no topo dos três degraus significa o Calvário no qual a cruz foi erguida.

A Raza começa com a procissão para a Bema (pequeno altar no centro da igreja) e as duas velas são colocadas sobre a Bema simbolizando o Antigo e o Novo Testamentos. Os diáconos que carregam as velas durante a procissão simbolizam os discípulos chamados a ser luz do mundo. A Raza é introduzida pela lembrança do mandamento de Cristo (Lc 22, 19), tanto pelo celebrante como pelos fiéis. A Raza começa com a proclamação da encarnação de Nosso Senhor por meio do símbolo do hino dos anjos: “Glória a Deus nas alturas...” (Lc 2, 14). Gradualmente, a comunidade adoradora entra no contexto do Antigo Testamento, da encarnação e da vida oculta de Jesus nos ritos introdutórios. A comunidade responde pronunciando: Amém, que significa: “Verdadeiramente, que assim seja, fielmente, certamente”; esta palavra “Amém” é como a reconstituição de todo o Mistério da Salvação. Na Raza, "Amém" é usado 65 vezes.

A oração do Senhor é recitada três vezes na Raza, como em outras formas de Qurbana. Enquanto característica distintiva da liturgia siríaca oriental, a oração do Senhor é recitada no início e no final da Raza. Após o rito da Reconciliação, a comunidade fiel, imaculada, de coração puro e rosto confiante invoca o Pai que está nos céus usando o Pai Nosso, como é costume em todas as liturgias, inclusive na Igreja latina.

Uma das orações frequentemente repetidas na Raza é: “Rezemos, a paz esteja conosco”. É o diácono quem a pronuncia. É usada quinze vezes em diferentes contextos. De certa forma, Raza é uma celebração da paz, do Senhor ressuscitado. A utilização dos salmos nos conduz no Mistério da encarnação e permite-nos identificar-nos com a vida do Antigo Testamento e proclamá-la como parte do Mistério de nossa história de salvação.

Uma das características únicas da Raza é a observância de um rito especial após os salmos, nomeadamente o Hino do Santuário e o Beijo da Cruz. Após a oração sacerdotal, que segue os salmos, o primeiro diácono entrega a cruz ao celebrante na Bema. Depois de homenageá-la com um beijo, ele ajuda o arquidiácono, os diáconos, os outros ministros e os fiéis a beijar a cruz. O coro canta o Hino do Santuário durante esse momento.

O hino de ressurreição Laku Mara d-Kolla, cantado três vezes durante a Raza, é atribuído a Simeão Bar Sabba (323-341). É um hino de celebração da vitória sobre o sofrimento, a morte e Satanás. Quando Laku Mara é cantado, o véu do santuário é tirado. É nossa tradição manter o santuário velado. O véu tem a função de revelar e esconder. O véu do santuário separa o santuário do restante da igreja. O véu, ao ocultar o santuário, revela aos participantes o Mistério do céu que está além da percepção do homem, a menos que seja revelado a ele. O véu do santuário indica que o céu está escondido à percepção humana ordinária. É na liturgia que experimentamos o céu. O véu do santuário simboliza Jesus, que é o único mediador entre Deus e os homens (1Tm 2, 5), e a revelação é identificada com a abertura do céu (Lc 4, 25). A lâmpada suspensa do santuário simboliza a presença de Deus e também representa Cristo como a luz do mundo.

Em nossa liturgia, o rito do incenso ocorre cinco vezes. O rito do incenso indica a glorificação de Deus, o perdão dos pecados e a santificação do homem. Durante o hino de Laku Mara, o diácono incensa todo o santuário, toda a igreja e a comunidade reunida. O incenso é um símbolo de nossa submissão total a Deus, da oração da comunidade que sobe ao céu; é também um sinal de perdão dos pecados. Durante o rito de preparação, o cálice e a patena são incensados. O incenso faz parte da procissão do livro dos Evangelhos. No início da oração eucarística Qudasha, em sinal de reverência e adoração para com os dons eucarísticos e o altar, o celebrante os incensa. Finalmente, durante o rito da reconciliação como símbolo do perdão dos pecados, o celebrante, os diáconos, a comunidade, o altar e os Santos Mistérios nele colocados são incensados. Este elaborado rito de incensação durante o rito de reconciliação é visto apenas na liturgia siro-malabar.

A vida pública de Nosso Senhor é comemorada durante a liturgia da Palavra na Raza. Começa com o Trisagion (Is 6, 3; Ap 4, 8) cantado três vezes. A Igreja reconhece este hino como aquele que proclama o papel da Santíssima Trindade na salvação do homem e que expressa a grande alegria da assembleia litúrgica em ouvir, compreender e acolher os detalhes desta história da salvação através da Sagrada Escritura.

Há quatro leituras bíblicas na Raza que correspondem ao dia do tempo litúrgico. Em geral, as leituras são tiradas da Lei, dos Profetas, do Apóstolo e do Evangelho. As quatro leituras da Raza são uma celebração completa de toda a Bíblia e uma confissão incondicional nela como fonte da fé cristã. A combinação do hino responsorial (Shurraya), dos hinos pedagógicos (Turgamma) e do hino Aleluia (Zummara) durante a Raza mostra o quanto a Palavra de Deus é importante para o ser humano. Os hinos de ensino antes da leitura do Apóstolo e do Evangelho e a procissão solene do livro dos Evangelhos são características únicas da liturgia siro-malabar, particularmente para a Raza. Uma única vela é carregada durante a leitura da epístola. Isso significa que as revelações anteriores a Jesus são imperfeitas.

No final do canto do Aleluia, o arquidiácono e o diácono, acompanhados de todos os outros ministros, levam o livro dos Evangelhos e a cruz colocados respectivamente à direita e à esquerda do altar. O arquidiácono conduz a procissão levando o evangeliário à fronte; chega à Bema e entrega o livro ao celebrante. O celebrante primeiro o beija, depois o entrega aos demais ministros e a todos os fiéis para que o beijem. Os diáconos dirigem-se à entrada do santuário, defrontam-se com o povo e alternam a Turgamma do Evangelho com a comunidade. No final do Turgamma, o celebrante canta o evangelho, enquanto os diáconos ficam de cada lado dele com velas acesas e o arquidiácono à sua esquerda segurando a cruz. Após o canto do evangelho, o celebrante fecha o evangeliário, beija-o e o entrega ao diácono à sua direita, que o coloca sobre a mesa na Bema. A cruz também é colocada na mesma mesa.

O segundo diácono propõe a oração de intercessão, que apresenta a real disposição e situação dos fiéis. A resposta às orações de intercessão, “Senhor, tende piedade de nós” (Mt 20, 29-34; Mt 15, 22; Lc 17, 13), mostra a boa atitude de quem pede as graças recebidas. Após as orações de intercessão, o celebrante reza em voz alta com as mãos estendidas. Terminada a oração, o arquidiácono pega a cruz e a entrega ao celebrante que, por sua vez, a entrega ao diácono à sua esquerda. O celebrante então pega o livro dos Evangelhos e o entrega ao diácono à sua direita. Os diáconos sobem ao altar e ficam de frente um para o outro diante dele.

Há a imposição de mãos no final da liturgia da Palavra. Deve-se notar que a bênção deve ser dada diretamente por Deus e, portanto, durante esse tempo, todos na comunidade, incluindo o celebrante, inclinam suas cabeças. O celebrante vai acompanhado do arquidiácono até o meio da nave, próximo a um grande véu (com uma cruz nele impressa), estendido ao chão, e recita a oração de frente para o altar. Na liturgia da Palavra celebramos a vida pública de Jesus e no rito de preparação das oferendas comemoramos a sua paixão, sua morte e o seu sepultamento. O rito de preparação é uma preparação imediata para a parte central do Qurbana. Agora o diácono dispensa todos os não batizados, os pecadores que não receberam a devida reconciliação de suas faltas e os catecúmenos que ainda não podem receber a Sagrada Comunhão. Em seguida, o segundo diácono beija e recebe o livro dos Evangelhos das mãos do primeiro diácono, e o primeiro diácono beija e recebe a cruz das mãos do segundo diácono. O evangeliário e a cruz são então colocados à direita e à esquerda do altar, simbolizando que o Filho e o Espírito Santo estão sentados à direita e à esquerda do Pai.

O celebrante então começa o hino e o coro e os diáconos respondem. Após cada parte do hino, o celebrante se ajoelha e beija três vezes o véu no chão, levanta-se e abençoa a comunidade com o sinal da cruz. Ele faz isso nos outros três lados do véu e retorna à posição original de frente para o altar. Os diáconos, agora voltados para o altar, cantam os versos: “Para sempre mais...”, voltam-se para o celebrante e cantam: “Imploramos a tua grande misericórdia...”. O celebrante e os diáconos cantam os versos: “Eis que estou convosco...” e “Pela vossa graça...” três vezes respectivamente. Ao final de cada série, os diáconos descem até o celebrante. Quando chegam ao véu e ficam de frente para o celebrante, todos cantam: “Salva-nos das tentações...”. Todos então se prostram juntos e beijam o véu. Ajoelhado, o celebrante abençoa os diáconos. Então todos se levantam e o celebrante os abençoa. O arquidiácono e os diáconos beijam a sagrada Paina do celebrante. Todo o ritual que é exclusivo dos cristãos de São Tomé da Índia é considerado como uma humilhação do celebrante, como uma preparação imediata para a anáfora Qudasha, a veneração da cruz e como uma cerimônia de despedida do celebrante que em breve deixará o Bema.

O celebrante lava as mãos na Bema como símbolo de purificação da comunidade enquanto o arquidiácono e o diácono vão para o bethgaze – os tesouros são dispostos em ambos os lados do altar. O cálice e a patena são preparados no bethgaze sul e norte, respectivamente. Em cada Raza, são preparadas apenas as partículas necessárias para a comunhão. Enquanto o coro canta os hinos próprios, o arquidiácono e o diácono trazem as oferendas eucarísticas ao altar que simboliza o cortejo fúnebre de Nosso Senhor. O arquidiácono em seguida os ergue em suas mãos em forma de cruz, os coloca sobre o altar e os cobre com um pano quadrado, soseppa, para simbolizar o sepultamento de Nosso Senhor e a cobertura do túmulo com uma pedra.

Na segunda parte da Raza, a comunidade recorda todos aqueles que estão intimamente ligados ao Mistério da salvação numa perspectiva cristã típica de São Tomé: a Santíssima Trindade, a Santíssima Virgem Maria, todos os apóstolos – muito especialmente São Tomé –, os patriarcas, os mártires, os justos, os confessores e os defuntos. O Credo é solenemente pronunciado pela comunidade enquanto se orienta à oração eucarística, parte central da memória do mistério da salvação na Raza.

O celebrante aproxima-se do altar com toda a humildade, prostrando-se três vezes no caminho. Ao chegar ao altar, beija o centro, a direita e a esquerda dele, representando respectivamente o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Na Anáfora, o celebrante solicita três vezes orações à comunidade, o que é uma expressão da íntima relação entre o celebrante e a assembleia litúrgica no corpo eclesial. Durante o Qudasha, o apogeu do evento de Cristo, a morte e ressurreição de Jesus é celebrada e proclamada. A Ressurreição é proclamada como ação suprema do Espírito Santo. Assim, a ação decisiva do Espírito Santo na salvação humana é proclamada também na Anáfora por meio do rito típico da Epiclese. No Qudasha dos apóstolos Mar Addai e Mar Mari, há orações de súplica e ação de graças. São pronunciadas pelo celebrante de cabeça baixa, voz baixa, mas audível e modulada. No final da segunda oração, g’hanta, canta-se o hino “Santo Senhor” (Is 6,3; Ap 4,8). No meio das terceira e quarta orações g’hanta, inserem-se, respectivamente, a narrativa da instituição e a epiclese.

O Rito de Reconciliação sublinha a reconciliação da humanidade com o Pai celeste por meio do auxílio do Espírito Santo. Este rito começa com a oração: “Paz aos que estão no céu...” que é uma combinação da teologia paulina nas epístolas do cativeiro e a teologia dos salmos. Os Salmos 51 e 122 são usados para incitar um coração arrependido, pronto para confessar os pecados e pedir a absolvição. Ao partir o Corpo e misturá-lo com o Sangue, proclama-se o efeito purificador da Sagrada Qurbana, bem como o papel da Santíssima Trindade na celebração dos Mistérios. Após misturar o Corpo com o Sangue, as duas metades são colocadas sobre a patena, uma em cima da outra em cruz, de modo que o lado partido da partícula na parte inferior fique voltado para o cálice, e o da partícula na parte superior, para o celebrante. Em seguida, o celebrante faz o sinal da cruz na própria fronte e na dos diáconos. Este é um resumo de um elaborado rito de reconciliação que existia na Igreja primitiva. Com a oração de diálogo na segunda parte do rito da Reconciliação, Raza se torna um ato público de reconciliação com seus aspectos verticais e horizontais. Esta saudação é uma confissão pública de que a Santíssima Trindade se entrega totalmente em Jesus Cristo ao Homem.

Como todos os que não são dignos de continuar são dispensados no final da liturgia da Palavra, a comunhão é um ato muito “privilegiado” durante a Raza. A comunhão sob as duas espécies que são consagradas em cada celebração é distribuída à comunidade. No rito de comunhão, os fiéis são unidos ao Corpo ressuscitado do Senhor. Tornam-se assim herdeiros do Reino dos Céus. Após a comunhão, a comunidade, o diácono e o celebrante exprimem separadamente a sua ação de graças. Em seguida, após a oração do Senhor, o Huttamma, a oração final (selamento) é dita pelo celebrante com o sinal da cruz e a bênção, estando um pouco à direita da porta do santuário. A Raza termina com a despedida do celebrante ao altar, com a oração: “Descanse em paz, altar do perdão...”. Ele a diz isso sozinho, em silêncio, e beija o altar.

O rito siro-malabar Qurbana é uma liturgia que apresenta um mundo místico único. A experiência mística deste mundo está além da lógica e das ideias humanas. Ele leva os seres humanos ao Céu, isto é, eleva a terra ao Céu e faz descer o Céu à terra. A liturgia é o ponto de encontro do Céu e da terra e eles se tornam um. Portanto, o desafio de Zofar a Jó é também um desafio para todos nós: “Podeis descobrir as coisas profundas de Deus? Podeis descobrir o limite do Todo-Poderoso?” (Jó 11, 7-8).

Madre Pia Gullini

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Grandes figuras da vida monástica

Irmã Maria Augusta Tescari, OCSO

Mosteiro de Vitorchiano (Itália))

 

Uma grande abadessa do século XX:

Madre Pia Gullini[1]

 

 

 

Nas realidades da história e da vida de nossas comunidades, existem caminhos que escapam a uma análise superficial: é preciso cavar fundo para reconhecer as vias secretas que a Providência usa para abrir um caminho entre as contradições humanas.

Às vezes nos surpreendemos com a fecundidade da comunidade de Vitorchiano, que deu origem a numerosas fundações. Esta milagrosa vitalidade pode ser explicada pela lei evangélica do grão de trigo que morre e que, ao morrer, dá muito fruto. Todos sabem do sacrifício da Irmã Maria-Gabriella, mas, na complexa história da comunidade que foi durante muito tempo a Cinderela da Ordem por suas origens e sua pobreza material e intelectual, havia outro grão menos conhecido, de qualidade um tanto extraordinária: madre Pia Gullini, abadessa de Grottaferrata de 1931 a 1940 e de 1946 a 1951. Nela, a humildade, a maternidade e o sentido da Igreja atingiram, a nosso ver, um grau excepcional.

Sabemos que Madre Pia sempre teve o desejo de fazer uma fundação; ela comparava esse desejo a uma árvore que ela cultivava e que outros (os superiores e as circunstâncias) continuamente cortavam, mas que ainda estava viva. Em 1948, ela escrevia a um abade da Ordem:

“Quando o Senhor quiser, dirá a esta árvore: ‘Faze crescer as tuas flores’, será a sua primavera e ninguém poderá impedir o seu florescimento.”

E ao mesmo correspondente, quatro anos depois:

“O Eterno procede lentamente, mas sempre consegue. Estou segura d’Ele e deixo a Ele sua liberdade infinita. Se eu já estiver com Ele quando Ele realizar esse desejo, ajudarei em dobro.”[2]

Profetisa, Madre Pia o fora em diversas ocasiões: em relação ao então nascente ecumenismo e à utilidade de difundir a simples mensagem de amor e doação da irmã Maria-Gabriella, mas também sobre sua própria morte e a impossibilidade de unir-se à sua comunidade em Vitorchiano, sua comunidade que para lá foi transferida de Grottaferrata em 1957. E bem sabemos que os profetas nunca tiveram uma vida fácil…


Sua vida

Ela nasceu em 16 de agosto de 1892 em Verona, onde sua família residiu por vários anos por causa do trabalho de seu pai. Maria Elena Gullini pertencia a uma família da alta burguesia bolonhesa. Seu pai, Arrigo, era engenheiro ferroviário: trabalhou na Itália e em Montenegro.  Ele se estabeleceu com sua família em Roma, provavelmente por causa dos estudos universitários de seus três filhos. Foi subdiretor dos Caminhos de Ferro do Estado além de presidente e administrador da importante Sociedade dos Estaleiros de Gênova, a Ansaldo.

Sua mãe, Celsa Rossi, distinguia-se por sua excepcional beleza, por uma extraordinária bondade e inteligência; na juventude pensara na vocação religiosa, mas não fora capaz de realizá-la; muito piedosa, viveu com intensidade a sua fé e procurou transmiti-la aos filhos. Reservada, não gostando de tudo o que era vaidade, deixou de bom grado que a filha mais velha, bela e empreendedora, a substituísse nas obrigações mundanas: Maria, portanto, acompanhava o pai às diversas recepções e refeições da alta sociedade.

Uma amiga relata que, no escritório do engenheiro Gullini, havia um grande retrato a óleo de Maria em um vestido de noite preto e branco, muito decotado e deixando os braços nus – para grande desgosto de sua mãe –, um retrato que revelava o lugar que a filha mais velha ocupava na vida social do pai. Madre Pia dizia que foi durante um baile, experimentando sua insatisfação diante das coisas fúteis e passageiras, que tomou a decisão de seguir a vocação religiosa.

Dos 8 aos 18 anos, estudou em Veneza, com as Damas do Sagrado Coração, recebendo ali a educação que então se dava às moças de boa família. O ensino era dado em francês. Com seu temperamento artístico, Maria se destacava em música e em pintura. Aos dez anos, recebeu a primeira comunhão das mãos do patriarca José Sarto, futuro São Pio X. Aos 12 anos, viu-se em perigo de morte devido a uma peritonite tuberculosa que a deixou, ao longo da vida, uma infeliz disposição à fadiga. Ela era muito viva, orgulhosa e rebelde, até violenta, ávida de liberdade, com evidentes qualidades de “líder”; amava a natureza, compadecia profundamente com o sofrimento dos outros e com as necessidades dos pobres, íntegra e leal, sem o menor traço de respeito humano. Ela passava as férias de verão na vila da propriedade da família perto de Bolonha ou em Montenegro. Por conta do trabalho do pai, foi madrinha na inauguração de trechos da ferrovia e as fotos de família a mostram com buquês de flores na mão enquanto corta uma fita. Parentes distantes ou camponeses ainda se lembram da chegada da “Demoiselle” na casa de campo dos avós e como ela estava atenta em cuidar de suas necessidades materiais e espirituais.

Ela estudava, com o pai, inglês e alemão pelo método Berlitz – uma novidade na época! – e com uma “professora” que vinha em casa para as aulas práticas. Esportiva, adorava patinação e equitação, frequentando cavalgadas em Roma. Após a declaração de guerra, fez o curso de enfermagem em “La Samaritana”, com o desejo de ir para o frente de batalha para tratar de soldados feridos. Seu pai se opôs ao projeto. Maria ia à missa quase todas as manhãs com a mãe e ensinava catecismo às crianças da elegante paróquia de São Camilo e da periférica de Santa Helena, em Prenestino, que ela amava. A frequência com que visitava as Irmãzinhas da Assunção de Via Nino Bixio a levava a acompanhá-las frequentemente, praticando com elas a ajuda aos pobres.

Aos pedidos de casamento que lhe eram feitos, opunha-se com recusas que afligiam a família: “Não, não é bonito! Falta requinte! Ele é muito alto! Ele é muito pequeno!…” Levada a refletir na presença de um par “ideal”, consentiu em ficar noiva, mas não oficialmente, de um muito simpático jovem engenheiro de Veneza, mas quando este último, um oficial da frente de batalha, quis que seu vínculo fosse esclarecido, Maria, que havia tomado consciência de sua vocação religiosa, lhe respondeu que não se casaria com ele.

Seu confessor e diretor espiritual foi um conhecido padre do Santíssimo Sacramento, o padre Di Lorenzo; foi ele quem mais ferozmente se opôs à sua entrada na Trapa (segundo ele, com o seu temperamento exuberante e inclinado à autonomia, não seria possível que Maria escolhesse o silêncio e a obediência dos trapistas), mas depois tornou-se um hóspede assíduo de Grottaferrata. Além disso, Maria Gullini, num primeiro momento, não tinha a menor intenção de entrar na Trapa. O serviço e a assistência aos pobres a atraíram para uma congregação ativa e, apesar da oposição de sua família, ela pediu para ser admitida nas Irmãzinhas da Assunção. Alta, bonita, cheia de vida e inteligente, ela tinha qualidades excepcionais demais para ser aceita “sic et simpliciter”. Madre Teresa, a superiora, mandou-a pedir conselho a Dom Norbert Sauvage, procurador dos trapistas, e este a obrigou a fazer um retiro de oito dias na Trapa de Grottaferrata, em clausura.

Era 14 de novembro de 1916 e Maria escrevia:

“Faço este retiro orando pelos pecadores: quanto ao resultado, Senhor, inspira o pai e farei exatamente o que ele me disser.”

E Dom Norbert que, no início de seu retiro lhe havia anunciado: “Falaremos de Jesus Cristo”, disse-lhe:

“Senhorita, parece-me que sois chamada para uma vida de amor; Jesus parece querer de vós o sacrifício completo. Vossa natureza quer a vida ativa, vossa alma exige e reclama a vida contemplativa.”

e lhe propõe imediatamente a Trapa. Mas não aqui.

“Em Laval, um dos primeiros mosteiros da Ordem, vivem oitenta monjas, entre as quais muitas jovens. Um demônio como vós, em tal massa de freiras, não se destacará muito.”

É muito provável que Dom Norbert tenha pensado em assegurar a senhorita Gullini uma boa formação monástica para fazê-la, em seguida, retornar a Grottaferrata para dirigir a comunidade, mas os documentos não nos permitem afirmar que houve um acordo com a abadessa de Grotta sobre este assunto.

Mas é certo que a partir desse momento começa um período de combate para Maria: com seus pais, com seu confessor e com outros padres que acusavam Dom Norbert de tê-la influenciado, mas sobretudo consigo mesma, que não queria se render à graça. O resultado desse combate foi a vitória de seu “doce Senhor” e a entrada de Maria em Laval em 28 de junho de 1917. A forma desinibida de agir da jovem desconcertou as monjas de Laval, como já havia espantado as monjas de Grottaferrata, mas a vocação era evidente, assim como a boa vontade da candidata, e por essa razão, houve paciência de ambos os lados. Em 29 de setembro de 1917, Irmã Pia – este nome lhe foi dado em memória do Papa que lhe deu a primeira comunhão em Veneza – tomou o hábito cisterciense; em 16 de julho de 1919 emitiu os primeiros votos e, três anos depois, na mesma data, emitiu a profissão perpétua.

Em 1923, foi nomeada mestra das irmãs conversas, que somavam cerca de quarenta. Eis Madre Pia, em Laval, tal como a evocam as irmãs conversas:

“Madre Pia tornou-se Madre mestra quase imediatamente após sua profissão. Minha Reverenda Madre Lutgarde confiava nela; ela dizia que, exceto alguns defeitos externos, minha madre Pia era perfeita. Ela era quem eu mais amava; foi ela quem mais me fez bem: fiquei encantada ao ouvi-la falar de Jesus e ao ver seu espírito de fé...”

Ela era uma alma ardente do amor de Deus; ela amava a Regra. Ela ia lavar as irmãs mais velhas, arrumar suas camas antes das quatro horas. Nunca tinha trabalhado no jardim, mas veio cavar com as irmãs e depois agradeceu... Tinha qualidades para tudo... Sua Madre mestra lembrava de sua extrema simplicidade e descreveu-a como uma alma magnânima, ardente, capaz de todos os sacrifícios.

A partir de 1923, Madre Agnès Scandelli, abadessa de Grottaferrata, solicitou a Laval ajuda de pessoal para a muito pobre comunidade italiana; mas Madre Lutgarde só pôde conceder-lhe – relutantemente – três anos depois! E essa ajuda foi naturalmente a italiana Madre Pia: “Estamos fazendo um grande sacrifício e Madre Pia também; mas não queremos recusar nada ao bom Deus”[4]. O motivo da repatriação da jovem monja era outro: Madre Pia sofria de um início de tuberculose e esperava-se que uma mudança de ares lhe fizesse algum bem, o que de fato aconteceu, embora lentamente. Madre Pia chegou a Grottaferrata em 9 de novembro de 1926. A dura partida de “seu” mosteiro de Laval foi muito dolorosa, e a integração em sua nova comunidade foi tudo menos fácil. A recém-chegada, de cultura e formação diferentes, doentia, com dons humanos excepcionais, provocava reações de rejeição. Sua decisão no ano seguinte de se estabilizar em Grotta foi heroica, dadas as circunstâncias.

Trabalho nos campos da comunidade de Grottaferrata.

As “Crônicas” falam de uma pressão por parte de seus pais para retê-la na Itália, mas de acordo com algumas cartas ou outros documentos é possível deduzir uma discreta insistência por parte dos superiores maiores, preocupados com o futuro de Grotta, privada de irmãs capazes de suceder à abadessa, idosa e doente. Tendo deixado seu mosteiro nas disposições interiores de um inteiro sacrifício – “um sacrifício nunca é recusado... eu irei para onde Deus me chama” –, Madre Pia superou seu desejo de voltar para Laval e as insistências de Laval para recuperá-la: ela continuou, no entanto, a correspondência com sua querida Madre Lutgarde até 1942, e, com a comunidade, até três anos antes de sua morte.

A situação muito difícil da comunidade de Grotta, muito ligada à sua abadessa, pesa muito a já frágil saúde de Madre Pia que, em 1928, viu agravar-se os seus ataques hepáticos a ponto de a obrigarem a sofrer uma intervenção cirúrgica – naquela época bastante delicada – o que a colocou em risco de morte por alguns dias.

Naquele momento, uma irmã conversa entre as mais velhas ofereceu sua vida pela recuperação de sua jovem coirmã. Ela se recuperou depois de uma estadia com sua família, foi subprioreza, enfermeira, depois prioresa, mostrando total obediência à Madre Agnès, embora sofresse de muitas coisas que, na comunidade, deveriam ser mudadas e que não foram.

Em 1931, Madre Agnès Scandelli, após trinta e três anos como superiora, renunciou. Madre Pia foi então nomeada abadessa por decisão pontifícia, seguindo um decreto do Cardeal Lega, bispo de Frascati, que traz a data de 30 de dezembro de 1931. Era impossível, de fato, proceder a uma eleição regular, dada a afeição que as freiras tinham por sua antiga superiora. Não é difícil imaginar a coragem e a fé necessárias numa situação tão particular: mas Madre Pia soube conquistar a estima e o amor da comunidade que a confirma, quase unanimemente, nas eleições de 1935 e 1938. Ela quis fazer de Grotta uma Trappe como eu mesmo vi, aludindo à sua tão amada Laval.

Embora as próprias paredes do convento estivessem impregnadas de oração e espírito de sacrifício, Grottaferrata parecia mais uma comunidade franciscana do que uma comunidade cisterciense. Empreender uma transformação era difícil por causa da pobreza – muitas vezes a conta mensal do padeiro era paga pela família Gullini –, também por causa da pequena dimensão e produtividade da propriedade (dois hectares e meio), e ainda por causa da casa inadequada, o pequeno número de coristas, a presença de algumas irmãs que lhe eram hostis e, posteriormente, as repercussões da Segunda Guerra Mundial.

Em 1939, irmã Maria-Gabriella faleceu e começou então para Grotta e sua abadessa um período muito fecundo, mas também muito tempestuoso. Em dezembro de 1940, portanto antes do final de seu terceiro triênio, Madre Pia foi obrigada a apresentar sua renúncia. As dificuldades – o caso não era novo, tratando-se de uma mulher inteligente e de forte vontade – vieram sobretudo dos superiores masculinos. Nas decisões que levaram à sua renúncia, certamente pesaram, além dos pontos de vista divergentes sobre a condução da comunidade, a correspondência sobre o ecumenismo e a publicação da biografia da irmã Maria-Gabriella, uma abertura que não era compreendida nem aprovada por todos!

A excelente Madre Tecla Fontana, que sucedeu a Madre Pia no governo da comunidade, confiou-lhe o noviciado, e Madre Pia, como boa educadora que era, consagra-se com alegria à formação das jovens, enquanto continuava sua enorme correspondência e suas relações ecumênicas.

Seis anos mais tarde, em 1946, ela foi reeleita abadessa e confirmada, por um voto quase unânime, já no primeiro escrutínio de 1949. Durante esses anos, ela também manteve a direção do noviciado. As oposições irreconciliáveis, embora muito poucas em número, persistiam: Madre Pia esperava o apoio do novo Abade geral e do superior de Frattocchie, recentemente nomeado, para iniciar uma fundação à qual vinha pensando há anos; mas, em 1951, antes do final de seu triênio, eclodiu uma crise que vinha se gestando há muito tempo. Em 19 de abril, o superior (que ainda não havia sido eleito abade) e o Padre imediato, o abade de Mont-des-Cats, reuniram a comunidade após o ofício de Noa e anunciaram que Madre Pia havia apresentado sua renúncia “por motivos particulares” e que já havia deixado a comunidade.

Madre Tecla retomou as rédeas da comunidade como superiora ad nutum. Foi um estrondo de trovão em céu sereno: a quase totalidade da comunidade nunca compreendeu os verdadeiros motivos dessa partida.

Madre Pia esperou em Roma, na casa das irmãs Ursulinas, até que seu passaporte lhe fosse concedido. Naqueles dias que deveriam ter sido muito tristes, eu a vi calma e serena: ela parecia uma hóspede real e não uma irmã em viagem de exílio![7] Partiu para a Abadia de La Fille-Dieu, onde deveria permanecer por oito anos, até ser chamada de volta à Itália. Em 1953, não lhe foi permitido retornar à sua pátria, nem para a eleição abacial, nem para as eleições políticas, embora duas outras irmãs italianas presentes no mosteiro suíço tenham podido voltar para lá.

Deixemos agora as irmãs de La Fille-Dieu descrevê-la durante sua estadia:

“Madre Pia era a própria bondade: sua amabilidade, seu rosto sorridente nos faziam bem. Gostávamos  de encontrá-la, porque seus grandes gestos pareciam nos envolver em seu coração. Ela tinha uma imensa piedade por aquelas que sofriam: ela queria consolá-las, ajudá-las... Seu espírito de fé a levava em direção a Jesus Hóstia: ela ficaria horas perto do Tabernáculo. Ela era uma grande silenciosa, permanecendo unida a Deus e vivendo em Sua presença. Seu talento como artista nos prestou grandes serviços... – Ela passou oito anos em La Fille-Dieu, dando o exemplo de uma religiosa perfeita; era uma alma generosa, de um grande espírito de fé, de uma caridade perfeita e cheia de uma delicadeza verdadeiramente materna, um coração de ouro que pensava apenas em agradar. Era uma alma silenciosa: para ela, o silêncio era uma audiência de amor com Nosso Senhor. Toda a minha vida, eu O agradecerei por ter vivido em contato com ela. Ela se apagava, procurava passar despercebida. De todas as virtudes ela deu o exemplo, e até mesmo o heroísmo. Uma grande monja: nosso Te Deum ambulante...”[8]

Enquanto isso, na Itália, a abadessa, eleita em 1953 e responsável pela transferência da comunidade de Grottaferrata para Vitorchiano, renunciou em 1958 por motivos de saúde. Foi nomeada uma superiora ad nutum. Em 1959, estava sendo preparada uma eleição abacial e Madre Pia foi oficialmente convocada de volta a Vitorchiano pelo Padre imediato; não sabemos se seu chamado tinha como objetivo sua possível eleição como abadessa ou o exercício de uma responsabilidade subalterna; a comunidade, em sua grande maioria, a solicitava e os superiores que a destituíram agora apoiavam seu retorno. Mas quem perceberia que Madre Pia estava à beira da morte na época? Que, dado seu estado de saúde, a viagem da Suíça, por si só, seria muito cansativa? De qualquer forma, não era sua responsabilidade decidir, mas apenas obedecer: ela partiu, muito cansada, mas serena.

Abadia de Vitorchiano. © AIM.

No dia 22 de fevereiro de 1959, ela deixou o mosteiro que a havia acolhido e onde havia desejado morrer. No dia 25, sob a intervenção de seu irmão médico, impressionado com sua aparência debilitada, ela foi hospitalizada na policlínica de Roma, onde recebeu muitas transfusões. Um mieloma em um estado muito avançado foi diagnosticado, além de danos irreparáveis nos rins, coração e outros órgãos. Madre Pia aceitou os cuidados e atenções que lhe foram dados com um reconhecimento desapegado, com tranquilidade e com o sorriso.

Em 15 de abril, ela saiu do hospital e foi recebida pelas irmãs Betlemitas para lá continuar, sob controle, uma terapia doravante inútil, enquanto aguardava para retornar a Vitorchiano. Ela tinha plena consciência de que não poderia assumir cargos de liderança; ela sentia que estava se aproximando de sua morte. Ela via claramente – e disse isso com calma e desapego real – que nunca mais se uniria à sua comunidade em vida: “Iremos ao Senhor antes de irmos para lá”, disse ela.

Sabendo que ela estava hospitalizada, eu fui visitá-la; ela estava sentada em uma poltrona. Essa visita me impressionou muito. Nenhuma palavra sobre o passado, nenhuma palavra sobre o futuro. Nenhum sinal de alegria – mesmo discreto – que uma pessoa em sua situação teria o direito de sentir; porque, acontecesse o que acontecesse, essa viagem à Itália era uma reabilitação.

Seu retorno a Vitorchiano estava programado para 5 de maio, dia da Ascensão. Ela morreu de um colapso cardíaco em 29 de abril, dia em que a Ordem celebrava, de acordo com o calendário litúrgico da época, o aniversário da morte de São Roberto, seu fundador favorito entre os fundadores de Cister. Provavelmente ela se identificava com sua busca, seu desejo de fundação e sua renúncia.

Madre Pia tinha 67 anos e 40 anos de profissão. Foi a primeira irmã a ser enterrada no novo cemitério de Vitorchiano, de acordo com a previsão que ela havia feito a uma monja italiana de La Fille-Dieu.


[1] Cortesia da Associação Arccis.

[2] Esta citação e as seguintes, que não têm referência explícita, são retiradas de notas e documentos conservados nos arquivos de Vitorchiano.

[3] Lutgarde Hémery, abadessa de Laval de 1900 a 1944

[4] Carta da Madre Lutgarde ao Reverendo Abade Geral - 24/10/1926.

[5] Vitorchiano - Crônicas - 1875/1975, p. 142.

[6] M. della Volpe, La strada della gratitudine, Jaca Book, Milano, IIed. 1996, p. 92.

[7] E. Francia, Lettere e scritti di Madre Pia, Roma, 1971, p. 92.

[8] Cartas das irmãs da Fille-Dieu, 1959.

O Studium do priorado Santa Maria de Bouaké

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Notícias

 

O Studium do priorado

Santa Maria de Bouaké

(Costa do Marfim)

Secretaria da AIM

 

 

Apresentamos aqui a iniciativa de formações do mosteiro de Bouaké como exemplo de proposta de equilíbrio entre a formação da vida monástica e a formação filosófico/teológica, sendo ambos igualmente necessários à sobrevivência de nossas comunidades, num mundo em constante transformação.

 

Em 2016, preocupado com a formação dos monges, tendo em vista o futuro da comunidade, o padre Jean-Luc Molinié, superior do mosteiro de Bouaké e monge da abadia de En-Calcat (França), organizou um Studium de formação filosófica e teológica, vinculado aos cursos da Faculdade de Teologia da UCAO (Universidade Católica da África Ocidental, situada em Abidjã).

Foi estabelecida uma convenção entre o Studium e a Faculdade no que diz respeito ao curso (programas e horas), aos professores da Faculdade envolvidos, bem como aos diplomas. A convenção prevê uma formação mais orientada sobre a vida monástica, pelo fato de que o Studium forma monges (estudos bíblicos, patrísticos, teologia espiritual, liturgia). O ciclo de estudos realizado na UCAO em dois anos é estabelecido em cinco anos para o Studium. Ao final dos estudos a Universidade entrega um documento reconhecendo oficialmente os créditos validados, assim como o bacharelado canônico para os estudantes de teologia.

Para reduzir os gastos de deslocamento, foram também criados vínculos com a Faculdade de Filosofia da Universidade Alassane Ouattara em Bouaké, em acordo com a Faculdade de Filosofia da UCAO.

Todo ano o ciclo de teologia do Studium vai de fevereiro a abril e o ciclo de filosofia, de outubro a dezembro.

Primeiro proposto aos irmãos em formação em Bouaké, em 2020 o Studium foi aberto aos monges e monjas, religiosos e religiosas de outras comunidades francofônicas da África. Essa diversidade é uma feliz oportunidade para os estudantes enriquecerem sua experiência de vida e aprofundar sua reflexão sobre a vida religiosa e monástica na África.

O número de estudantes varia entre dez e vinte e vêm da Costa do Marfim, de Burundi, do Congo-Brazzaville, do Gabão, do Togo e de Ruanda, de comunidades beneditinas, mas também de outras Ordens, como a da Fraternidade Monástica Jesus Eucarístico (de Gagnoa), os Clérigos de São Vitor, a comunidade fundada por Zacarias em Burundi...

O financiamento do Studium é assegurado por uma contribuição dos estudantes e pelo apoio da AIM: gastos de deslocamento dos professores das Faculdades, de alojamento dos estudantes, ensino.

Os professores

Para perpetuar o projeto do Studium é importante que alguns irmãos possam assegurar uma parte da formação, além dos professores que vêm das Faculdades. Estando o Studium sob a tutela acadêmica da UCAO, apenas os irmãos com pelo menos o Mestrado, são habilitados para darem cursos. O diretor do Studium deve ter o diploma de Doutorado. Alguns irmãos da comunidade de Bouaké, já diplomados em teologia seguem estudos no Centro de Formação dos dominicanos de Yamoussoukro, ou no Instituto de Teologia Jesuíta da África Ocidental para depois, assegurarem cargos no Studium.

O local das aulas

Desde 2004, depois dos violentos confrontos que sacudiram o país, a comunidade tentou habilitar o dispensário para a população local. A convite das autoridades sanitárias do país, o projeto foi transformado em um grande centro de saúde: maternidade, laboratório, dispensário... Infelizmente, muitas dificuldades não permitiram que o projeto continuasse: falta de meios financeiros, má gestão dos profissionais implicados, manutenção dos edifícios, gastos para o funcionamento etc. Então, a comunidade decidiu pelo abandono desse projeto e a restauração dos dois edifícios como centro de acolhimento dos estudantes de formação filosófica e teológica do Studium. A AIM participou financeiramente da restauração dos edifícios em operação. Durante os seis meses anuais de formação os dois edifícios acolheram os estudantes para o alojamento e os cursos; o resto do ano os edifícios são colocados à disposição de grupos de jovens para retiros espirituais.


O ano preparatório

A chegada de um pouco de novos estudantes todo ano obriga a refletir sua integração nos cursos, uma vez que eles se juntam a alunos que já tiveram um determinado número de aulas. Além do mais, a experiência dos primeiros anos do Studium mostrou que era necessário estabelecer uma formação básica filosófica e teológica anterior às aulas mais aprofundadas, mesmo que o estudante, então, optasse apenas pelo curso de teologia. De fato, os desafios atuais das sociedades, as perguntas e problemáticas que eles suscitam nas comunidades religiosas implicam ter um mínimo de formação filosófica para compreendê-los e colocar corretamente o trabalho de reflexão. Por essas duas razões – e com a condição de ter um mínimo de cinco estudantes por ano -, o Studium acaba de organizar um período preparatório obrigatório de mais ou menos nove meses para todos os estudantes que ingressam nos cursos do Studium. Este tempo inclui aula de filosofia por três meses consecutivos (introdução à filosofia, metodologia, hermenêutica, antropologia, política, filosofia antiga, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino), aula de teologia por três meses consecutivos (introdução à Bíblia, ao Novo Testamento, à teologia, metodologia, teologia fundamental, os sacramentos, articulação filosofia e teologia, vida intelectual espiritual, introdução ao Direito Canônico, os primeiros séculos...), e um período de revisões e exames eventuais. A formação básica também pode ser útil para irmãos e irmãs que não podem se comprometer com vários anos de estudo no curso do Studium.


Futuro

O Studium parece bem estabelecido, agora, e seu funcionamento assegurado.

Será útil devolver as obras da biblioteca dos irmãos de Bouaké, acessíveis aos estudantes do Studium, para facilitar seus estudos. Uma reflexão é engajada para construir uma edifício-biblioteca adaptada ao trabalho deles e às suas pesquisas.



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