COMO TRANSMITIR OS VALORES MONÁSTICOS?

Dom Nicolas Dayez, OSB

DayezO autor, Dom Nicolas Dayez, Abade emérito de Maredsous, nos dá logo de início a chave de interpretação de seu artigo: «antes de abordar o ‘como’, é preciso empregar todos os esforços para compreender o que a palavra ‘transmitir’ quer dizer e supõe». Isso evitará que procuremos de imediato as receitas e os meios.

Este é o título que me foi proposto. Devo explicá-lo brevemente. Primeiramente, quero dizer que não definirei quais são os valores monásticos a transmitir. Isso seria objeto de um outro debate ou de outra conferência. Em seguida, não me prenderei muito ao «como». Evidentemente, não tenho «receitas» a dar sobre a maneira concreta de transmitir alguma coisa sobre esse assunto. Não desejo também me esquivar da dificuldade. Entretanto, antes de abordar o «como», é preciso empregar todos os esforços para compreender o que a palavra «transmitir» quer dizer e supõe. Isso esclarecerá, aliás, a palavra «como», mesmo involuntariamente.

As reflexões que seguem focalizarão em primeiro lugar e, sobretudo, o verbo «transmitir». Com o risco, talvez, de decepcionar no que se refere aos meios. Mas se encontramos hoje certas decepções concernentes à transmissão, é, talvez, em parte, pela falta de haver suficientemente refletido sobre a palavra «transmitir»; talvez também pelo fato de muito rapidamente termos nos precipitado sobre o termo «como».

É evidente que não há nada de original no que digo. Baseio-me no que os outros disseram antes de mim. Procurarei repeti-lo à minha maneira, sem recorrer muito a citações, de modo a não tornar pesada esta exposição.

Pode-se transmitir?

Hoje, nós mesmos sentimos um mal-estar na transmissão. A prova é que isso nos preocupa. Em preparação a este encontro, alguém me escreveu: «Como agir quando nos dirigimos aos jovens, quer sejam nossos hóspedes ou candidatos à vida monástica? Parece que o que temos a transmitir não interessa a ninguém, porque não sabemos como nos tornar inteligíveis. Conviria também examinar como a transmissão dos valores monásticos e da história de nossas comunidades é feita em nossas fundações, e com que resultados?»

O mal-estar não se refere somente aos valores ou a uma cultura a transmitir, mas ao próprio ato de transmitir. Temos nós o direito de transmitir? Não é uma agressão à liberdade? E se transmitidos, como transmitir alguma coisa de si sem se impor? Em maio de 1968, há 40 anos, ouvia-se o slogan: «Nada de mestre!» Era o grito de protesto de toda uma geração contra o que se chamava a violência da transmissão, o peso esmagador da autoridade dos mestres e dos pais. Como se não houvesse um meio de transmitir sem abusar de seu poder, de sua ascendência, afirmando o peso daquilo que nos precede ou da existência.

O sonho daqueles que assim se exprimiam era, então, de construir-se a si próprio, sem contrair nem reconhecer dívida alguma com quem quer que fosse. Tratava-se do «self-made-man». E em relação àqueles que até então tinham a responsabilidade de transmitir, havia uma espécie de vazio, de interrupção de toda transmissão ou de quase toda.

Quero chamar a atenção para o seguinte fato: o que estava sendo colocado em questão não era em primeiro lugar o modo da transmissão, mas a própria transmissão, a intenção de querer transmitir alguma coisa. É por isso que no título desta conferência, como já disse, pareceu-me necessário focalizar primeiramente o verbo «transmitir».

Alguns exemplos

Para tentar ser concreto, tomemos exemplos de transmissão que conhecemos e que poderemos analisar um pouco mais do que costumamos.

São Bento

Vou deter-me no ensinamento do abade. Mas haveria toda uma leitura a ser feita das situações de transmissão na Regra e da maneira como São Bento as concebe. Rapidamente.

Todo o Prólogo, com a palavra «Escuta» colocada no início, e, portanto toda a Regra, é a expressão da vontade de transmitir algo ao discípulo que vem se colocar na escola do serviço do Senhor. Mas há também uma série de situações que implicam em maior número o conceito de transmissão.

A obediência e a transmissão de uma ordem. O estabelecimento dos decanos e a transmissão de uma autoridade. A excomunhão que constitui uma fenda na comunicação e como restaurá-la. Os bens materiais e tudo o que concerne à ação de dar e de receber. A transmissão de um sinal para o Ofício Divino. A hospitalidade e a maneira de transmitir um modo de habitar. A recepção dos irmãos na vida monástica, evidentemente. A tarefa do porteiro: receber e transmitir uma mensagem. E ainda a recepção do ensino dos Santos Padres que nos precederam.

Não sou exaustivo, mas uma análise das situações as mais concretas traria, também elas, luzes concretas.

Voltemos ao abade. São Bento espera que ele seja instruído na lei divina, de tal maneira que saiba de onde retirar coisas novas e velhas. O encontro do novo e do antigo: eis, penso eu, a síntese de todas as questões que compõem o ato de transmitir.

Coisas novas e velhas. Custa-nos muito pensar em ambas ao mesmo tempo. De um lado os arquivos, os museus, a memória; de outro, os projetos, as possibilidades, a abertura. Consideramos um contrário ao outro. Quando muito, eles podem se suceder, estar um ao lado do outro, mas não existir ao mesmo tempo, e ainda menos uni-los. Portanto, está aí o problema, a questão, o desafio a assinalar. Pois é preciso encontrar uma maneira de reconduzir o velho e o novo à unidade, uma maneira de unificar os dois domínios. É preciso encontrar uma maneira de fundir, de unir o novo e o velho.

Soldar supõe fogo, calor, o que deixa traços, uma espécie de cicatriz. Mas, sabe-se bem, que os tecidos cicatrizados tornam-se mais sólidos naquele local, resistem muito mais. Um osso quebrado e soldado jamais quebra no mesmo lugar. Será preciso, pois, encontrar alguém que una o velho e o novo, que reúna o que já foi realizado e o que ainda deve sê-lo, o que é passado e o que é futuro, o que é mortal e o que não termina.

Fogo, calor, resistência de uma cicatriz: onde encontrar tudo isso? Não há alguém do qual se disse que é «como o fogo do fundidor» (Ml 3, 2)? Não há alguém que um dia falou em línguas de fogo? Não há alguém que um dia disse: «Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que ele já estivesse aceso» (Lc 12, 49)? Não será ele o crisol onde o novo e o velho se fundem, tornando-se indissolúveis no fogo do amor? Não seria ele que traz a cicatriz, sinal indelével da união refeita entre Deus e a humanidade, após uma ferida e uma fratura que chamamos original? Será que não haveria nele a ancianidade da humanidade e a novidade de Deus, daqui em diante indissolúveis, inseparáveis?

Não é por acaso que São Bento pede que o abade seja considerado como Cristo no meio de seus irmãos.

O novo e o velho. A igual distância dos dois, eis o monge para ser instruído, para ser gerado, podemos dizer. Eis também o abade, chamado a dar prova de um talento de «encadernador». Aquilo que melhor deu suas provas (o antigo) deve ser unido àquilo que é bom, ainda em esperança (o novo). O que já foi realizado deve ser unido àquilo que está no futuro. Eis, pois, o monge que pode apropriar-se do que é bom em esperança, desejoso, sem dúvida, de lhe acrescentar mais intensidade. O abade deve mostrar-lhe a única figura capaz de misturar assim o passado e a vida, o que é pacífico e o que é ainda palpitante, o que é mortal e o que não termina.

Para ser bem sucedido nesse curto circuito, é preciso que o abade desapareça. Mais exatamente, que ceda lugar àquele do qual faz as vezes no mosteiro, que se deixe iluminar e queimar por ele. Assim, falando em língua de fogo, como o Espírito na manhã de Pentecostes, ele se tornará esse fogo cuja mensagem garante a persuasão, o cadinho onde se fundem o novo e o velho, inseparáveis, fazendo-se um só. O novo e o velho se tornam obra indissolúvel do fogo do amor.

O apóstolo Paulo

«Eu aprendi do Senhor o que vos transmiti» (1Cor 11, 23).

São Paulo é judeu, grego e latino. Reúne em sua pessoa os três grandes domínios de onde nasceu o Ocidente. Judeu: nasceu em Tarso, foi instruído em Jerusalém, em casa de Gamaliel, respeita a Lei e cita a Torá, os salmos e os profetas, é fariseu. Grego: escreve em grego, fala grego, cita às vezes um ou outro autor grego, evoca e admira a sabedoria dos gregos, tem também medo da inteligência deles. Romano: cidadão romano como seu pai, ele se vangloria, conhece o direito romano, pois apelou para os tribunais do Império.

Eis um homem que depende de três correntes diferentes. É ele que vai fazer surgir o ramo de uma nova criatura. Pertence a três comunidades, mas criará uma nova, original, que não pertence a nenhuma das três. Ele transmite.

Transmite, sofrendo três reveses. Junto aos judeus é perseguido por seus correligionários. Com os gregos, os filósofos riem dele e aconselham que volte mais tarde. Com os romanos, é julgado e, sem dúvida, executado.

Mais tarde ele dirá: «Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher» (Gl 3, 28). Por outras palavras, o que estava ligado a uma cultura determinada – judia, grega, romana – de agora em diante, é transmitido a toda humanidade, seja ela qual for. Não é mais ligado a uma genealogia, a um laço de sangue. Não é mais ligado a uma língua. Pentecostes o mostrou. Não está mais ligado a um contrato, como havia tantos no mundo romano.

Eu dizia que São Paulo fez surgir um ramo de um tronco novo. É nisso que ele se revela como um transmissor genial. Não corta o tronco do ramo, mas apoia-se sobre o tronco. «Se queres gloriar-te, não és tu que sustentas a raiz, é a raiz que te sustenta» (cf. Rm 11, 16-18).

São Paulo libera a mensagem, ele a faz brilhar sem destruí-la. De certa maneira, dá-nos esse conceito universal de que hoje temos necessidade para falar sobre o que chamamos globalização. A Igreja, o Corpo de Cristo, poderá acolher os judeus, os romanos, os gregos, os bárbaros de todas as nações, todos os homens, todas as mulheres, crianças e escravos, homens livres e imigrantes. Todos se tornam o novo ramo surgido do antigo. A mensagem foi transmitida. A Lei e o profetismo bíblico subsistem e não morrem, assim como a ciência grega, como o direito romano. Paulo não destruiu sua proveniência. Mas a transmitiu.

A Anunciação

Devemos ainda meditar sobre outras figuras: Maria e o anjo Gabriel, na Anunciação.

O que vemos na narrativa da Anunciação? Trata-se primeiramente de um diálogo. Nos Evangelhos, isso é quase único. Aqui, há um diálogo, com perguntas e respostas. Isso não é indiferente para o tema que nos ocupa.

Maria é uma criatura mortal, comum, ocupada com seus hábitos cotidianos. O anjo é uma criatura inesperada, excepcional (é de fato um arcanjo, no nosso vocabulário), uma criatura santa. A Maria, que se diz indigna e realmente é, se lhe apresenta o Verbo de Deus. O que deve ser transmitido aqui, é o próprio Verbo de Deus. De seu lado, o anjo Gabriel, o mensageiro, se inclina humildemente (Ave, Maria) diante daquela que se torna, exatamente neste instante, a mãe de Deus que ela traz em seu seio (o Senhor é convosco).

Ambos estão cheios de respeito. Maria respeita o sinal divino, que lhe é transmitido por Gabriel, o mensageiro. Gabriel respeita a concepção divina que Maria recebe; ele se restringe ao seu papel de mensageiro, transmite toda a mensagem, não retém nada para si do que deve transmitir.

Aqui, o vai-e-vem (a transmissão) acontece entre duas pessoas, horizontalmente. E nesse vai-e- vem sem fim, nessa reciprocidade visível e simbólica, há uma terceira presença: nós adivinhamos qual seja, porque ela é imensa, mas também invisível e sem rosto. Esta terceira presença é Deus que envolve a cena com sua sombra límpida: sob a aparência do anjo e de Maria, tudo se passa como se Deus estivesse em face de Deus. Nossos olhos de carne vêem Maria e Gabriel, mas a fé contempla, em espírito, a Aparição face à Encarnação.

O Verbo anunciado por Gabriel se faz Carne no seio de Maria. Há como que uma transparência a atravessar o colóquio ou a conversação entre o anjo e Maria. Em realidade, é uma presença que invade as duas figuras: Gabriel e Maria são visíveis, mas eles desaparecem para que Deus se incline em face de si mesmo, para que o Deus-Verbo se incline diante do Deus-Carne. Os olhares de Gabriel e de Maria estão fixos naquele que ali está.

Somente a humildade pode produzir tal simetria. O anjo se faz diáfano em relação à mensagem que traz, prostra-se diante da mensagem. Ambos se humilham diante de Deus. Ela se inclina diante do filho que ela já carrega em si; ele se inclina diante da palavra que ele próprio traz.

Diálogo, respeito, humildade, transparência, apagamento diante da mensagem: quantos acontecimentos a considerar longamente na narrativa da Anunciação.

O próprio Cristo

Deus sabe se ele é o alguém que tem algo a transmitir. Trata-se nem mais nem menos de transmitir a própria vida de Deus. O anjo Gabriel era portador de uma mensagem; Cristo é a própria mensagem. Situado entre Deus e a humanidade, ele é a terceira pessoa que aludi entre o anjo Gabriel e a Virgem Maria, com esta grande diferença: aqui ela é visível. De modo indivisível, ele é o transmissor e o receptor.

Naquilo que é, Cristo se mostra como uma espécie de transmissão ideal, da qual nós só podemos nos aproximar. É ao mesmo tempo e de maneira indivisível aquele que transmite e que recebe; é Deus que transmite sua própria vida, é o homem que recebe a vida de Deus. Nisso, ele é de alguma maneira um modelo, ao qual nós devíamos tender em nossa diligência de transmitir. Não somente nos colocarmos no lugar daquele a quem queremos transmitir, não somente adotar os seus hábitos, sua cultura, sua maneira de ver as coisas, mas ser verdadeiramente, embora permanecendo com sua própria personalidade. E isso sem uma divisão funesta entre os dois.

Sem divisão, mas não sem dilaceração. São Paulo o diz muito bem em sua Carta aos Filipenses. Jesus para isso aceitou esvaziar-se a si mesmo. Uma outra maneira de dizer: quem quer salvar sua alma deve perdê-la, quem perde sua alma salvá-la-á. São Paulo dirá também: «por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo nome» (Fl 2, 9).

Modelo de transmissor, Cristo o é. Mas o modelo não é estático, é preciso considerá-lo em toda sua vida, em todos os seus passos, do início até o fim. É preciso não suprimir nada dos passos que representam a vida do Cristo, que é um andar de transmissão e, se assim posso dizer, é como a conjugação do verbo «transmitir» em todos os tempos e vozes.

Meditar nesse sentido a vida de Cristo é, sem dúvida alguma, a raiz mais fecunda para descobrir o que há no verbo «transmitir». Isso supõe tempo, muito tempo, um caminho sempre retomado e aprofundado sem cessar e, portanto, uma formidável paciência. É uma maneira de aprender que toda transmissão tem esse preço.

Duas palavras fortes

Sugeri olharmos algumas figuras, o que equivale a contemplá-las: São Bento, a Anunciação, São Paulo, Cristo. Certamente, haveria outras. Sugeri muito brevemente algumas indicações para ajudar a prolongar esta meditação. Gostaria agora de citar e comentar duas palavras fortes que por natureza ajudam a formar nossa reflexão. Não são aparentemente indicações concretas: é preciso fazer assim, é necessário não fazer assim... Mas estas palavras indicam uma direção e desabrocham em opções concretas sobre o terreno.

«Os que amaram sua própria origem, amam gerar» (cf. M. Serres, Le Tiers Instruit, p. 93).

Isto é, os que gostaram de receber a transmissão, amam transmitir; os que gostaram que alguém lhes transmitisse tal coisa, de tal maneira, gostam de transmitir; os que gostaram de se encontrar na situação de alguém a quem se transmite alguma coisa, gostam de transmitir.

Aqueles que gostaram não somente do que lhes foi transmitido, mas ainda mais do fato de que alguém lhes tenha transmitido e a maneira com a qual lhes foi transmitido, estes, por sua vez, são tomados pela paixão da pedagogia, pela paixão de transmitir.

A primeira coisa inevitável e necessária consiste em receber sua própria cultura, pronto tanto a recusá-la depois, como questioná-la. Como evitar essa necessidade de se enraizar em algum lugar, e se estamos impregnados, como não amar suas raízes? «Eu não posso amar as outras culturas e delas me impregnar sem conhecer e praticar profundamente a minha» (M. Serres, La Guerre mondiale, Le Pommier, 2008, p. 192). Se desprezamos a nossa língua, nossos costumes, nossos ritos religiosos, pecamos por arrogância e cremos compreender o que não dominamos.

Nós vimos o exemplo tão esclarecedor de São Paulo. Ele bifurca o ramo sobre o qual está plantado, mas não o abandona; continua a amá-lo, a ponto de dizer que gostaria de ser anátema em favor de seus irmãos, para que sigam o caminho que ele mesmo tomou (cf. Rm 9, 3). Transmite sem abandonar.

Antes de gostar de transmitir, ou melhor, para gostar de transmitir, é preciso gostar de receber, gostar de ter recebido. E receber é um ato menos passivo do que se crê, um ato que deixa traços, cicatrizes, feridas. O aprendizado é sempre um ato difícil, que exige suportar ativamente a passividade de receber. Naufragamos cem vezes, mas daí saímos incrivelmente vivos.

Trata-se simplesmente de teoria, de belas palavras mais ou menos compreensíveis? Sem querer aqui jogar pedra em quem quer que seja, nem querer minimizar o trabalho extraordinário que teve por fim justamente transmitir, sem querer ignorar tudo o que é feito hoje para atingir as gerações das quais temos a impressão que nos escapam, seria proibido indagar se nós manifestamos um amor suficiente derivado do fato de que um dia, nós mesmos estivemos na situação de receber, na situação daqueles e daquelas a quem era transmitida uma herança?

Tal amor não deve ser confundido com um conservadorismo sem inteligência. Em todos os exemplos pessoais citados na primeira parte, há um momento de ruptura, um momento em que alguma coisa deve ser abandonada. Diríamos, portanto, que há um momento em que as coisas não devem mais ser amadas? Talvez – digo talvez – na maneira como nós deixamos de lado muitas coisas tornadas ultrapassadas, que haviam terminado por nos paralisar, será que não deixamos de colocar bastante amor?

Talvez pudéssemos nos aplicar esta palavra que deve também ser meditada longamente: «Nós não compreendemos para onde vai o progresso porque esquecemos de onde ele partiu» (N. Serres, Statues, p. 46).

É o que podemos transpor dizendo: não sabemos mais como transmitir, porque esquecemos não o que nos foi transmitido, mas esquecemos que isso nos foi transmitido. Para amar o futuro que está à nossa frente, é preciso amar sua memória (o que, às vezes, chamamos história).

Eis aqui outra palavra forte. «A palavra é letra morta se não é transmitida de um espírito a outro» (Newman, Sermons universitaires V, Desclée de Brouwer, 1955, p.122-142). Contentar-me-ei apenas em citá-la, pois exigiria uma longa meditação. Poderemos evidentemente nos transportar ao próprio Newman nesse sermão, um dos mais belos apresentados em 1832 na Universidade. Em todo caso, nele aprenderemos que a linguagem do «testemunho» é melhor do que a do «doutor».

Comunicação e transmissão

Se estamos preocupados com a transmissão, é porque há gerações que se sucedem. Umas morrem, outras nascem. Há uma espécie de jogo de se esconder uns dos outros. Uns sabem que vão morrer, que não são eternos, que vão desaparecer; querem, pois, legar aos sucessores algo deles mesmos, alguma coisa daquilo que valorizam. Os outros têm necessidade de aprender, de receber, necessitam que seus mais velhos lhes transmitam algo do seu saber.

Há, portanto, um laço entre a transmissão e a idéia da morte, a perspectiva de desaparecer. Se chegarmos a garantir às gerações futuras a memória daquilo que valorizamos, a angústia será ao menos atenuada.

E se considerarmos os valores monásticos, o que está em jogo ultrapassa largamente nossas pessoas, nossas gerações. O temor que isso desapareça vai bem além de tal grupo de pessoas, de tal mosteiro, de tal instituição.

Entretanto, isso não diminui nossa eventual angústia. Provavelmente, a aumente. Que nós desapareçamos pessoalmente não me atingiria da mesma maneira que um eventual desaparecimento da vida monástica. Tanto mais que a questão é não somente de saber como transmitir, mas também, ao menos em certas partes do mundo, de saber se há alguém a quem transmitir.

Com já lembrei rapidamente, hoje se questiona o fato mesmo de transmitir. Quem tem hoje a autoridade de transmitir? A que título pode-se fazê-lo? Hoje, quando a palavra «globalização» está em todos os lábios e em todos os domínios, quais valores – inclusive os valores monásticos – transmitir a grupos humanos que não possuem a mesma herança? Quem são os herdeiros, quais são as heranças, quais os argumentos que podem convencer para transmitir?

Diante de tais questões, é grande a tentação de se agarrar ao presente, de tornar a fechá-lo sobre si mesmo. Mas sabemos muito bem que essa não é uma solução. É grande a tentação de se refugiar na informação, de se contentar com a comunicação, mas de negligenciar a transmissão. A informação é o imediato e isso não pede grande reflexão; a transmissão é lenta e isso supõe uma reflexão crítica. A comunicação faz parte do domínio da imagem, no sentido amplo da palavra; a transmissão é mais abstrata. Supõe a escuta, o silêncio da contemplação.

Acabo de distinguir a comunicação e a transmissão, a informação e a transmissão. Penso que é preciso meditar mais longamente sobre esta distinção. Sem dizer seu nome, esta distinção já se deixava adivinhar nas «palavras fortes» que citei, sobretudo em Newman.

A transmissão supõe condutores, o que é muito diferente do que pede a comunicação. O condutor ajuda a transpor os obstáculos no percurso da aquisição do saber e da assimilação necessária; isso exige a duração, a aceitação da complexidade do mundo e da humanidade, e tudo isso em vista de enriquecer o futuro e para dar os meios de agir nele.

Vê-se logo onde é preciso situar-se, ao falar de valores monásticos a transmitir a outros. Vê-se logo que a atitude a adotar – a do condutor – supõe uma ascese real, para resistir a tudo o que hoje caminha em outra direção. Por isso, após haver meditado longamente sobre a distinção entre comunicação, de um lado a informação, de outro a transmissão, será necessário também meditar longamente sobre a atitude do condutor. É o momento de lembrar a sugestão feita sobre a pessoa de Cristo, condutor por excelência.

O exemplo mais banal é, sem dúvida, o mais loquaz. Tomemos o rio a atravessar. Quando o nadador ou o condutor atravessa um rio largo ou um rio perigoso, sua viagem divide-se em três partes. Ele olha a margem da partida, e faz isso sempre, ao menos para manter a possibilidade de voltar atrás. Quando vê ou descobre a outra margem, a da chegada, é como se já estivesse lá.

Entre esses dois momentos da viagem, há um terceiro (lembrem-se de que, falando da Anunciação, eu lembrava uma terceira presença, além do anjo e de Maria). Bem no meio do percurso há um momento decisivo. À igual distância das duas margens, durante um tempo mais ou menos longo, ele não se encontra mais de um lado e não está ainda no outro. Situação desconfortável que pode gerar inquietude. O condutor fica em suspenso: muito tarde para voltar atrás, cedo demais para estar certo de chegar ao outro lado. Há aí um espaço jamais ou raramente explorado.

Isso é um pouco do que quis lembrar, quando dizia que não perguntamos o bastante sobre o que é efetivamente o fato em si de transmitir: perguntamos o que vamos transmitir (margem da partida), como ou a quem transmitir (margem da chegada), mas nos perguntamos muito pouco o que é transmitir (espaço intermediário).

O condutor vive assim uma transição, um meio termo. Nesse corredor, ao mesmo tempo neutro e misto, o passageiro ou o condutor mistura em si duas naturezas, duas línguas, duas culturas, até quase se dissolver e se perder. É o momento de lembrar a palavra do Evangelho: «Quem quer salvar a sua alma, deve perdê-la» (Mt 16, 25). O passageiro deve perder a primeira margem, se quiser atingir a outra. Se dedicarmos nossas vidas e nossa boa vontade às trocas, às mensagens, às relações, não podemos deixar de experimentar este espaço das travessias. Mas como a posição é desconfortável, não queremos nos deter mais na experiência de descrevê-la ou de compreendê-la.

Dayez2...Ele olha a margem da partida, e faz isso sempre, ao menos para manter a possibilidade de voltar atrás.

Quando vê ou descobre a outra margem, a da chegada, é como se já estivesse lá.

Entre esses dois momentos da viagem, há um terceiro...

A verdadeira travessia realiza-se no meio. O passageiro que atravessa descobre um segundo mundo, aquele para o qual ele passa, pelo qual transita. É, sem dúvida, um dos segredos da transmissão: ter a paciência de ficar nesse terceiro mundo, onde se entremeiam o primeiro, de onde se parte, e o segundo, para o qual se dirige.

Não somente há uma outra margem que se deixa ver, uma outra linguagem, outros usos, uma outra cultura, mas este local que acabo de designar como terceiro é o do traço de união. Meditar sobre o verbo transmitir, sobre o que é transmitir, é meditar sobre o traço de união, sobre o hífen.

Numa palavra que comporta um hífen, o hífen em si não diz nada. Se o considerarmos sozinho, ele não tem nenhum conteúdo. Mas o seu verdadeiro conteúdo é o de ser ao mesmo tempo as duas palavras que ele une, as duas realidades que ele conserva juntas. Ao mesmo tempo pobre, pois ele não é nada, e, ao mesmo tempo rico, pois está impregnado das duas margens (para retornarmos à imagem do rio a atravessar). Ao mesmo tempo sem sentido algum e ao mesmo tempo repleto de todos os sentidos.

Posição desconfortável, como já falei, mas à qual é preciso ter a coragem de se deter um pouco. É aí que aprendemos verdadeiramente o que é uma passagem (uma Páscoa), o que é o aprendizado, com a angústia de um possível naufrágio, se não chegamos à outra margem e não conseguimos retornar à primeira.

Até agora, falei, sobretudo, adotando o ponto de vista daquele que tem algo a transmitir, um pouco como se ele fosse o único a deixar uma margem para ganhar a outra, como se ele fosse o único a ter que conhecer o desconforto do traço de união, do hífen.

É excessivamente simples. Aquele a quem as coisas devem ser transmitidas deve também fazer um caminho análogo. Será preciso que faça a experiência desconfortável do traço de união, do hífen. Não pode se contentar simplesmente em receber. Aliás, o ato de receber não se confunde com a simples passividade.

Há, pois, um momento em que o que transmite e aquele a quem se transmite deverão se reencontrar entre as duas margens, cada um tendo deixado a margem de seu lado. Falo como se tratasse de momentos que se sucedem cronologicamente. Isso para a clareza (espero!) da exposição. Mas é evidente que, na realidade, as coisas não se realizam dessa maneira.

Lembro que, a propósito do famoso traço de união, eu disse que ele era pobre sob certo aspecto, não tendo mais o sentido ligado ao que ele deixou, mas não tendo ainda o sentido para o qual ele se dirige. Em si, portanto, não tem sentido, mas é para encontrar todos, para uni-los um ao outro, para tomar todas as direções. Isto é: universal, podendo receber tudo, tudo integrar.

Provavelmente, para nós, o traço de união mais fecundo é o que colocamos entre Jesus e Cristo. Pomos, assim, em relação um nome semita (Jesus) e um nome grego (Cristo), unimos duas famílias culturais; nós as transmitimos uma à outra e reciprocamente. Será exagerado pensar que uma longa e profunda meditação sobre esse tema deveria trazer-nos, não as soluções, sem dúvida, mas suas raízes, isto é, aquilo sem o qual não podemos edificar nada de sólido.

Transmissão e criação

«Nós esquecemos o espiritual... Deus, perdido sobre a margem em frente, marca minha carência. Careço de uma ponte. Somente um homem Deus, com duas naturezas, pode reconstruí-la. Reencontraremos o corpo de Cristo? Recriaremos assim nosso próprio corpo?» (M. Serres, L’art des ponts. Homo pontifex, 2006, p. 204)

Nessa citação, encontra-se a idéia de criação ou de recriação que acaba de se introduzir. Será o último elemento que irei evocar rapidamente, porque não o associamos espontaneamente ao da transmissão. Esta pode verdadeiramente criar? Ela cria, transformando o distribuidor e o receptor da mensagem, transformação que atua ou que começa lá onde eles se encontram, entre as duas margens para retomar a imagem de há pouco. Sem isso, a transmissão seria somente uma cópia, uma repetição.

* * *

É tempo de terminar. Retomando os elementos mais importantes do que já foi dito.

Do que é feita a transmissão?

Vou falar um pouco em imagens.

Nossas rodovias oferecem modelos de transmissão, com esses acessos às vezes imensos. Num grau menor, as rotatórias ou «tortas» oferecem tal modelo de transmissão.

Notamos isso suficientemente? Para ir à esquerda, para converter à esquerda, é preciso primeiramente dirigir-se à direita, fazendo um aparente desvio. A transmissão nos obriga a tais surpresas, a tais desvios aparentes, a tais mudanças de nossos reflexos e de nossos costumes.

Os jogadores de futebol (ou de outros jogos de equipe que jogam com bola) sabem que todo o jogo consiste em não guardar a bola para si, mas transmiti-la o mais rapidamente possível àquele que está melhor colocado e assim por diante até o fim.

A transmissão tem algo semelhante: é preciso não guardar o que se tem. Quem quer salvar sua alma deve perdê-la. Há na transmissão um aspecto de despojamento, de morte a si mesmo. É preciso perder o que se transmite para salvá-lo.

Os Jogos Olímpicos de 2008 nos mostraram a tocha partindo da Grécia e transmitida sucessivamente a certo número de países, antes de chegar a Pequim. Nós transmitimos menos uma mensagem do que uma tocha. Somos convidados a falar sempre em língua de fogo. Somente a mensagem que flameja é recebida.

Para concluir, é preciso que a transmissão se realize na beleza. «De fato, seja qual for o conteúdo que se queira transmitir, se for feito na fealdade, só ela permanecerá e o conteúdo se dissipará, deixando lugar à violência; se for gerado na beleza, a transmissão será recebida, o conteúdo permanecerá, e esta bela exigência, propagando-se, permitirá a todos viverem ao redor» (M. Serres, Atlas, 1994, p. 16).

Traduzido do francês por Irmã Maria Cruz, OSB,
Mosteiro Nossa Senhora da Paz, Itapecerica da Serra, SP.

Este texto reproduz o essencial de uma conferência dada em outubro de 2008, aos Conselhos de algumas Congregações monásticas: Beneditinas da Rainha dos Apóstolos, Beneditinas de Vanves, Beneditinas do Calvário, Irmãs de Jesus Crucificado.