Confucionimo e vida religiosa
Adaptação e ruptura das religiosas Amantes da Cruz
relativamente à sociedade confucionista do Vietnã

Ir. Marie Tuyết Mai

Eis um testemunho que propriamente não caberia em nossas rubricas. Mas vale a pena ser apresentado em nosso Boletim. Trata-se de uma comunidade autóctone que, em sua origem, não sofreu nenhuma influência européia. As Irmãs logo souberam discernir quais valores da própria cultura poderiam ser integrados em sua vida religiosa, e quais aspectos do Evangelho lhes trariam uma libertação e uma superação de suas tradições culturais.     

As Amantes da Cruz, surgidas na Conchinchina e no Tonquim no séc. XVII, apresentam-se a si mesmas no início desse artigo.

Introdução

Pierre Lambert de la Motte, o fundador das Amantes da Cruz, participou com François Pallu da fundação das Missões Estrangeiras de Paris. Roma os nomeou bispos quando da criação da Igreja vietnamita, em 9 de setembro de 1659, há 350 anos. É preciso considerar que este projeto de criação de uma congregação religiosa feminina não aconteceu no seio de uma Igreja local desenvolvida e reconhecida, mas entre uma comunidade cristã ainda embrionária e sujeita à perseguição. Pierre Lambert de la Motte desejava que religiosas européias viessem se juntar a ele para estabelecer ali a vida religiosa, mas tal desejo era irrealizável. No entanto, pode-se hoje dizer que foi uma graça de Deus, pois as Amantes da Cruz se desenvolveram durante dois séculos sem um modelo religioso europeu. Por isso guardaram totalmente as características culturais vietnamitas na vida consagrada. Naquela época, as Amantes da Cruz, que vou apresentar agora, eram as únicas religiosas no Vietnã.

D. Lambert fundou as primeiras comunidades das Amantes da Cruz, em 19 de fevereiro de 1670, no Tonquim, e em dezembro de 1671, na Conchinchina. Seis anos depois da fundação, as Amantes da Cruz já eram uma centena distribuídas em várias comunidades. D. Lambert limitava cada uma destas comunidades a uma dezena de membros.

Conforme as regras da época, a clausura e os votos solenes eram características das religiosas, e se elas professassem somente os votos simples e temporários, renovados anualmente, em comunidade sem clausura, seriam somente uma confraria. Por isso, o decreto romano de 28 de agosto de 1678 oficializou as Amantes da Cruz como confraria, mas, na realidade, desde o início seus membros foram considerados como religiosas.

I. Adaptação

I.1 O sentido da perfeição

Desde o início, pudemos nos admirar do entusiasmo das jovens tonquinesas em abraçar a castidade cristã. Naquela época, toda a educação vietnamita repousava sobre a formação humana ensinada por Confúcio, que consistia, primeiramente, em praticar as cinco virtudes: nhân = sociabilidade-humanidade (respeito pelo outro, ter um coração bom); nghîa = piedade filial (reconhecimento, respeito pelos parentes e ancestrais); = cortesia (respeito pelos ritos, os costumes); tri = dedicação aos estudos (coragem intelectual, «aquele que não tem estudo, também não tem virtudes»); tin = credibilidade (ser digno de fé, veraz). No Vietnã, todas as pessoas sabem de cor as nove palavras de ouro: Tu Thân, Tê Gia, Tri Quôc, Binh Thiên Ha (primeiramente, tornar-se perfeito, para poder depois governar a família, para em seguida governar o país, para enfim pacificar o mundo). Isto quer dizer que tornar-se perfeito, é a base de todo o restante. Para as jovens, insiste-se em quatro virtudes: công = o trabalho doméstico; dung = a beleza; ngôn = a boa palavra; hanh = a boa atitude, e não se podiam conceber estas quatro virtudes sem as três submissões: ao pai antes do casamento,  ao marido quando casada, e ao filho mais velho quando viúva.

Tudo resumia-se em aperfeiçoar-se a si mesma, em tornar-se uma pessoa perfeita. E se as jovens eram atraídas para a vida consagrada, é porque ela se apresentava como uma vida de perfeição. Aliás, na língua vietnamita, o mesmo termo TU se aplicava à busca da perfeição e à vida consagrada. O cristianismo realizava, de certo modo, a aspiração à perfeição contida no confucionismo.

I.2 O espírito de família

O campo de ação do Confucionismo é a vida familiar, consiste em aperfeiçoar-se não isoladamente, mas em família. Não convém a um vietnamita ser um celibatário sem vida comunitária, deixar sua família sem agregar-se a uma outra estrutura familiar. No começo da evangelização, para os padres, os catequistas e os seminaristas esta nova família se chamava Casa de Deus, uma verdadeira casa com uma vida familiar, enquanto que para as mulheres que escolhiam a vida religiosa, esta casa familiar se chamava Casa da felicidade, o nome que foi dado espontaneamente a uma comunidade de Amantes da Cruz.      

Todas as pessoas, cristãs ou não-cristãs, as chamavam de «Di» (tia, sinal de uma certa integração da religiosa na família de cada um), «Di Phuóc» (a tia que faz o bem) ou «Cô Mu», «Bà Mu», no Tonquim (senhorita ou senhora honorável). Estes são os distintivos mais respeitosos, os sentimentos mais profundos que lhes dedicavam. Quando as religiosas chegarem da Europa, serão chamadas de: «So», trascrição de Irmã. Para os padres, optou-se por designá-los por um termo familiar. São chamados de «Cu» ou «Cô» (bisavô, o auge da consideração familiar).

vietnamA tradução vietnamita do termo «congregação» para Dòng é um bom exemplo de inculturação. Em Dòng não prevalece o aspecto institucional, sobre a estrutura e as regras, mas a palavra significa «grande família», «clã», e também «ascendência», «linhagem», «filiação», reagrupando todas as gerações unidas por laços de sangue. Propor a nova congregação como Dòng às jovens vietnamitas, correspondia primeiramente a um contexto confuciano. Desde as primeiras comunidades intencionou-se misturar as idades, para que as jovens respeitassem as mais velhas e as mais velhas considerassem as mais novas como filhas ou sobrinhas. Para elas, a comunidade era considerada uma nova família.

A marca confucionista das comunidades das Amantes da Cruz era reforçada pela influência do missionário que garantia o papel do pai de família nestas comunidades femininas. Mas a mulher vietnamita guardava suas prerrogativas, mais extensas do que na China. O domínio que ela rege, o interior da casa, abrange a comunidade, o cuidado com os enfermos, a educação das crianças, a alimentação daqueles que precisam. 

Naquela época, era uma bênção para uma aldeia ter em seu centro uma Casa da felicidade, porque os aldeões sabiam que seus doentes seriam cuidados e alimentados, e suas crianças instruídas. Reencontramos no termo Nhà Phuóc a mesma relação sentimental que os vietnamitas experimentavam pela sua Dinh, a casa comunal de sua aldeia natal.

Compreende-se assim como a característica familiar da congregação das Amantes da Cruz impregnava a comunidade cristã. É ao redor de suas casas que gravitavam as paróquias quando não havia uma Casa de Deus. O cuidado de D. Lambert de la Motte em limitar a comunidade das Amantes da Cruz a dez membros, permitiu a multiplicação das implantações e cada comunidade serviu também de lugar discreto de culto. Com efeito, diante da perseguição não se podiam construir igrejas muito visíveis. Deste modo, o missionário que percorria as aldeias cristãs, encontrava nas Amantes da Cruz tudo o que era necessário para celebrar a missa.

No tempo em que os padres e os catequistas eram itinerantes, no exercício de seu ministério, as Amantes da Cruz garantiam habitualmente o atendimento da comunidade cristã, e era para elas que as pessoas se dirigiam para levar ou receber notícias, sobretudo no tempo das perseguições. Acontecia, às vezes, que as Amantes da Cruz percorriam as aldeias que rodavam as suas casas e pousavam nas casas dos cristãos para exercer sua missão. Quando um missionário não tinha nenhum catequista para enviar em missão, enviava duas Amantes da Cruz para pregar nas praças e nas aldeias não cristãs. Isto era uma ruptura em relação às tradições confucionistas que obrigavam as mulheres a permanecerem em casa.

II. A ruptura

II.1 A situação da mulher   

Se as Amantes da Cruz adaptavam-se ao espírito do confucionismo, não havia nisso um conformismo, pois para Confucio a mulher se tornava virtuosa ao casar-se, e considerava, ao mesmo tempo, que as ocupações dos homens e das mulheres não deviam ser semelhantes. Ora, para as Amantes da Cruz, D. Lambert pediu: «importa enormemente praticar todas as coisas no lugar de Jesus Cristo» (um homem !), e elas colaboravam, em certa medida, com os padres no domínio da pastoral, sobretudo em relação às  mulheres.

O yin e o yang são qualificações que correspondem à maneira pela qual são vistos a mulher (yin = sombra, frio, fraqueza, submissão, ignorância, passividade e, finalmente, tudo o que é mal) e o homem (yang = luz, calor, força, comando, saber, ação, e finalmente, tudo o que é bom) na sociedade chinesa primitiva. É uma benção do Destino ser um homem, e uma maldição do Destino ser uma mulher, e a este respeito ela nada pode fazer. O pensamento de Confúcio contribuiu para fixar esta maneira de ver que se traduziu em um rito, que não se poderia modificar sem colocar em perigo a ordem do mundo. Tal é a visão da mulher que o Vietnã herdou do mundo chinês. A maternidade é a única glória da mulher, mesmo que ela não lhe retire a submissão ao homem.

II.2. A disposição de si mesma para uma mulher

Sobre o voto de castidade, cristianismo e confucionismo encontram-se em conflito e em ruptura. Aí as posições são irreconciliáveis. A mulher confucionista não tem a possibilidade de comprometer sua vida, não dispõe de seu corpo nem dela mesma, não possui nenhuma autonomia para comprometer-se. Não pode escolher nem recusar seu marido. Assim, não era possível para os confucionistas levar a sério o voto de castidade, e dar-lhe qualquer valor.

Freqüentemente, as casas das irmãs eram consideradas como um lugar de refúgio para as jovens insubmissas, que deveriam, de acordo com os confucionistas, serem devolvidas ao caminho da submissão, se preciso até pela violência; também pensava-se, às vezes, que ali seriam encontradas jovens destinadas ao casamento, que se poderia retirar à força da comunidade. Isso obrigava a se estabelecer casas das Amantes da Cruz apenas em ambientes cristãos. A comunidade cristã assegurava, com efeito, a sua proteção e isto reforçava a união entre elas e o resto da comunidade, dando uma característica particular à paróquia vietnamita, nos tempos em que o Vietnã não conhecia outras comunidades religiosas além das Amantes da Cruz.

Conclusão

Entretanto, as Amantes da Cruz pagaram um preço alto pela sua fidelidade aos votos. Centenas foram mortas entre 1857 e 1861, e em particular entre agosto e setembro de 1885, quando 270 religiosas morreram. A história guarda ainda o testemunho e as mortes dolorosas das irmãs martirizadas : Madeleine Nguyên Thi Hâu (†1841), Agnès Soan e Anne Tri (†1861-1862). 

No Vietnã, em 2008, as Amantes da Cruz eram 5630 Professas, 796 Noviças, 644 Postulantes e 2700 Aspirantes. Suas atividades, previstas pelo fundador, situam-se em 4 áreas : Apostolado, Educação, Saúde, Trabalhos Sociais.

Apesar dos limites em todos os domínios (capacitação, material...), elas se dedicam o melhor possível em oferecer seus dois pães e seus cinco peixes, como na multiplicação dos pães. Deus haverá de multiplicar estes dons para que o amor e a salvação atinjam seu povo através da espiritualidade da Cruz, que ele concedeu a D. Lambert de la Motte, um filho da França, a «filha primogênita» da Igreja.(1)

Ir. Marie Tuyết Mai, de nacionalidade vietnamita,
é religiosa da Congregação das Amantes da Cruz.

Traduzido do francês por Madre Paula Ramos, OSB,
Mosteiro da Santíssima Trindade, Santa Cruz do Sul, RS.

(1) Agradecemos a Irmã Marie que aceitou publicar um resumo de sua comunicação no colóquio «Rostos de mulheres missionárias em terra de missão», realizado de 27 a 28 de março de 2009, no Instituto Católico de Paris.