O NONO CENTENÁRIO DE SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIA
P. Alfredo Simon, OSB
Celebra-se neste ano o IX centenário da morte de Santo Anselmo em sua sé primacial de Cantuária (1109), motivo pelo qual o Papa Bento XVI escreveu uma Carta ao Abade Primaz dos Beneditinos, Dom Notker Wolf. A esta Carta, acrescenta-se a Homilia do Santo Padre durante as Vésperas do dia 24 de maio, Domingo da Ascensão, na Arquiabadia de Monte Cassino. A reflexão do Papa junta-se assim a numerosos congressos que, em vários países, estão sendo organizados durante este ano para comemorar a efeméride.
O Papa Bento e os beneditinos
Ao longo de sua vida, o Papa visitou regularmente os Mosteiros beneditinos, sobretudo na Baviera e na Itália, escrevendo belas páginas sobre o significado que eles têm na tradição cultural e espiritual do cristianismo. Como um simples exemplo, poderíamos aludir a seu livro «Deus e o mundo», escrito quando era cardeal, ou à escolha de seu nome pontifício motivado também, embora não apenas, por sua devoção a São Bento.
No dia 24 de maio, em Monte Cassino, uma centena de monges e monjas do mundo inteiro teve a oportunidade de participar com Bento XVI do almoço, das Vésperas e da veneração do sepulcro do Santo Abade e de sua irmã, Santa Escolástica. Em sua Homilia durante as Vésperas, agradecido, o Papa recordou aos monges a hospitalidade com que foi brindado em várias ocasiões naquela Arquiabadia, reconhecendo ter ali passado «inolvidáveis momentos de tranqüilidade e oração». Suas palavras quiseram destacar a renovação que constituiu no Ocidente «a aventura humana e espiritual de São Bento», a quem ele chama, citando o Prefácio litúrgico de sua festa, «doutor em sabedoria espiritual» e «mestre de civilização», pelo equilíbrio que soube propor entre o ideal de santidade e a fraternidade autêntica e pacífica entre os homens e as sociedades. Com efeito, a paz, ou melhor, «a arte da paz» como diz o Papa, é o lema dos monges beneditinos, e muitos peregrinos e hóspedes podem ler o emblema «PAX» na entrada dos Mosteiros.
Mesmo assim, é inevitável esta pergunta verdadeira: os monges têm ainda um sentido no mundo de hoje? O Papa, de sua parte, articula uma resposta lúcida em torno de três princípios básicos: a oração, a cultura e o trabalho. Os monges, diz ele, com a cruz, o livro e o arado construíram, na alta Idade Média, o continente europeu caracterizado por um humanismo sempre aberto à transcendência e preocupado pelo bem comum. Se palavras como «diálogo» ou «encontro» têm algum significado na sociedade atual, os mosteiros continuam a ter um sentido, pois se converteram, lembra o Papa, em «centros vivos de diálogo» e encontro entre pessoas diferentes.
Além do mais, a «procura de Deus» da Regra de São Bento proporcionou à ação dos monges na história uma sólida referência espiritual, também necessária em nossa época, e fez com que a vocação monástica seja «mais atual do que nunca». Consciente da importância decisiva que têm as origens na configuração de uma identidade, o Papa exortou a Europa, sob a égide de seu Padroeiro, a recuperar suas raízes culturais e seu patrimônio espiritual para ser novamente criadora de uma sabedoria verdadeira e libertadora do homem e das comunidades.
Nessa linha, seu discurso aos intelectuais em Paris, a 12 de setembro de 2008, teve uma grande repercussão. O referido discurso versou precisamente sobre a importância que o Quærere Deum dos monges teve na configuração do cristianismo medieval e sobre a atualidade que poderia ter na cultura contemporânea. Inspirando-se principalmente no famoso livro de Dom Jean Leclercq, OSB, L’amour des lettres et le désir de Dieu, o Papa foi comentando de maneira sistemática o primeiro desabrochar da cultura cristã medieval e seu contexto de grandes mudanças demográficas, no qual os Mosteiros se tornaram sólidos focos de acolhida amorosa e vivência inspiradora do fato essencial: a Palavra de Deus.
Em torno da lectio divina e da celebração litúrgica comunitária, os monges integraram o saber literário e o pensamento, a arte e o trabalho, a música e a experiência espiritual em uma unidade de vida criadora de uma cultura que recuperava o ser do homem como imagem de Deus, e se manifestava esteticamente na perfeição de um canto no qual se refletia a harmonia divina do plano criador do cosmos e da redenção humana.
O Mosteiro reunia assim as condições para ser um universo criativo e uma epifania do Mistério.
De modo particular, o significado teológico da música procurava exprimir, como explicava São Bernardo, a semelhança do homem com Deus, assim como o fato de desafinar em uma melodia indicava a regio dissimilitudinis, o pecado e a imperfeição do homem afastado de Deus.
A vida da fé entre os monges abria o espaço hermenêutico para a contemplação e a beleza mediante a leitura da Escritura, que constituía, para o monge, a experiência do encontro divino. Seu desejo se orientava não para um vazio, mas para uma Palavra feita Logos e sacramento em Cristo, agindo de maneira permanente na história dos homens. Em definitivo, procurar a Deus era e é a forma de achá-lo, a forma do encontro, como o amor era e é a forma de vivê-lo e experimentá-lo.
Santo Anselmo, um mestre de espiritualidade e de teologia
Uma das figuras monásticas mais fascinantes da tradição beneditina medieval é representada por Santo Anselmo. Monge e Abade do Mosteiro do Bec, tornou-se, a contragosto, Arcebispo de Cantuária, e hoje é reconhecido como Doutor da Igreja. O Papa em sua Carta ao Abade Primaz da Confederação Beneditina e Grão Chanceler do Pontifício Ateneu de Santo Anselmo de Roma, destaca na obra de Santo Anselmo um modo de fazer teologia que une à reflexão teórica a experiência espiritual dos mistérios da fé.
De fato, sua obra mais conhecida, o Proslógion, começa com uma oração para, em seguida, passar a uma argumentação rigorosamente racional acerca do conhecimento de Deus. Cada vez mais se redescobre em Santo Anselmo não apenas o gênio que concebeu uma prova da existência de Deus ou uma lógica da redenção (cf. Cur Deus homo), mas também um mestre da espiritualidade cristã por meio de suas orações e cartas. Na realidade, o Papa insiste mais uma vez sobre a importância e a urgência de se conhecer as fontes cristãs antigas e a história da Igreja do primeiro milênio.
Santo Anselmo reconhece que o homem não pode compreender o que diz quando pronuncia o nome de Deus. Para ele, como para os Padres, o conhecimento de Deus é um movimento do espírito e do coração, da razão e do desejo, no qual, o que hoje nós chamamos de teologia e espiritualidade, progridem juntas numa dinâmica que fecunda a inteligência e o afeto.
Seus textos sobre a verdade e a liberdade, além das outras obras mais conhecidas, revelam essa modalidade cognitiva que não é puramente teórica, mas inclui o amor, a alegria da experiência espiritual, a admiração e a contemplação. Dessa forma, Santo Anselmo se apresenta como um filho da tradição patrística e monástica, onde a sabedoria integrava o homem inteiro em uma unidade de racionalidade e afetividade, e se compreendia como manifestação do dom em última instância recebido de Deus.
A contemplação da beleza e da verdade na visão de Deus é a meta final que Santo Anselmo persegue com sua vida e sua obra. Nesse caminho, como testemunha sua vasta correspondência, a amizade será a forma privilegiada de chegar até lá, acompanhada pela experiência da alegria e da felicidade que Deus quis para o homem. Inúmeras cartas aparecem como um elogio do amor e da amizade entre homens e mulheres que vivem seu ser relacional como um dom e como uma responsabilidade.
Por todos esses motivos, Santo Anselmo, como outros testemunhos exemplares da tradição antiga, tem ainda muito para dizer à Igreja de hoje.
P. Alfredo Simón, OSB, é monge da
Abadia de Santa Cruz del Valle de los Caídos, em Madrid (Espanha) e
Decano da Faculdade de Filosofia do Pontifício Ateneu de Santo Anselmo, em Roma.
Traduzido do castelhano por Almerinda Gonçales d’Almeida.