Madre Anna Chiara Meli, ocso
Prioresa de Mvanda (RDC)

As Bem-aventuranças
Programa de formação monástica

 

“Muitos se perguntam: quem nos dá a felicidade?
Sobre nós fazei brilhar o esplendor da vossa face”
(Sl 4,7)

 

Este versículo do salmo 4 é, sem dúvida, uma chave excelente para entrar na meditação das Bem-aventuranças. De fato trata-se da procura da felicidade. E isso é um desejo universal: toda a pessoa quer ser feliz. Mas de que felicidade se trata?

Oito vezes São Mateus nos propõe um caminho para a felicidade: “felizes”, mas uma felicidade bastante afastada dos critérios humanos. Quem, hoje, ousaria proclamar felizes os que choram, os que têm fome, e até mesmo os mansos? Nosso mundo nos remete imagens opostas, felizes são os que riem, os saciados, os fortes, etc.

O caminho proposto pelas Bem-aventuranças leva à mesma resposta que o versículo do salmo 4: a face de Cristo. De fato, parece que as bem-aventuranças de São Mateus nos dão, antes de mais, um retrato interior de Jesus, o pobre por excelência, e que nos permitem assim descobrir a sua face.

Como diz M. Dumais : “Jesus pôde proclamar as Bem-aventuranças, porque ele foi a primeiro a vivê-las. Elas refletem a sua experiência, na prática concreta da fé e da esperança, atravessada pelo sofrimento e pela perspectiva da morte. Jesus é assim, a garantia e o modelo de uma existência feliz”1. Jesus inaugura sua pregação, em Mateus, com um apelo à felicidade.

Chouraqui vê por trás da palavra “Felizes” uma expressão aramaica, que é um convite para se pôr em movimento: “Vamos…” A felicidade, a que Jesus nos chama, é algo a construir com Ele. Recebe-se de Deus, mas depende das nossas escolhas, dos nossos engajamentos. Isto vê-se ao longo das Escrituras. Por exemplo no Salmo 1, a felicidade é prometida “àquele que não anda conforme os conselhos dos perversos, nem junto aos zombadores vai sentar-se, mas encontra seu prazer na lei de Deus, e a medita dia e noite”. É preciso mudar “de conselhos”, mudar a disposição interior e fazer calar “os projetos vãos das nações” (Sal 2,1), que entram tão facilmente em nós, para nos enraizarmos na Torah, como árvore plantada à beira da torrente. O salmo 2, aliás, termina com uma bem-aventurança, “felizes todos aqueles que põem sua esperança no Senhor”. Se quisermos resumir as Bem-aventuranças podemos dizer simplesmente “felizes aqueles que se assemelham a Jesus. Feliz quem encontra sua alegria em estar, simplesmente, perto do Pai”.

Um outro aspecto interessante das Bem-aventuranças, é que o conjunto das sete últimas é uma “declinação” da primeira. Todas são um aspecto da verdadeira pobreza de coração. Temos, então, de compreender bem a primeira bem-aventurança.

Se a expressão « pobres em espírito” é única em toda a Escritura, ela tem, no entanto um fundo bíblico, e pode ser aproximada de outras expressões semelhantes no evangelho de Mateus: “os puros de coração” (5,8) e Jesus “manso e humilde de coração” (11,29). A pobreza de coração é um estado de espírito que marca todas as atitudes da pessoa. “Um espírito qualificado pela pobreza não é autossuficiente, mas sabe reconhecer sua indigência, sua necessidade dos outros para viver e crescer”. Daí a interpretação hoje bastante aceita “Felizes os que se reconhecem totalmente dependentes de Deus e se entregam a Ele”2. Esta primeira bem-aventurança é o oposto do poder, do ser dono de si, de se entregar a Deus. É a sorte cotidiana daqueles que o Antigo Testamento chama de anawim (da raiz “encurvar-se”, daí a tradução proposta por E. De Luca para esta bem-aventurança dos pobres: “Felizes os encurvados pelo vento”). Os anawim são os oprimidos socialmente, incapazes de fazerem respeitar seus direitos, obrigados a encurvarem-se diante dos ricos e poderosos. O termo foi depois usado para designar os que “se curvam diante do Senhor” e esperam tudo dele, pois reconhecem sua indigência. De fato, o anaw, o pobre de coração, “reconhece-se como é: uma criatura que tem em Deus sua riqueza. É aberto e acolhedor… para ele a salvação é um dom a receber, antes de ser uma tarefa a cumprir. A primeira bem-aventurança é a bem-aventurança de base, pois expressa a atitude fundamental
necessária para pertencer ao Reino: receber. Sem ela, é impossível enriquecer, viver e crescer na comunhão com Deus e com os outros”3.

Esta primeira bem-aventurança, já o dissemos, contém todas as outras. É como a matriz. Tudo o que vem depois descreve um aspecto do verdadeiro pobre de coração. E já dissemos, igualmente, que este verdadeiro pobre de coração é o próprio Jesus. Vamos vê-lo nas outras três: a dos mansos, dos aflitos e dos misericordiosos.

“Bem-aventurados os mansos”: o termo usado (praüs) não está nos outros evangelhos e só aparece duas vezes em Mt 11,29 “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” e em Mt 21,5 (citando Zac 9,9) “Eis o teu rei que vem a ti, manso e montado num jumento, filho de uma jumenta”.

As duas citações têm a ver com o abaixamento de Cristo. Ele é O manso. Os mansos são aqueles que, como ele, encontram sua alegria ao trabalhar na obra de Deus.

“O manso não procura forçar Deus a fazer o que ele deseja (…) aceita o tempo de Deus e o modo como Deus age. Não é um fraco, mas pelo contrário, tem uma grande força de alma.”4

"Bem-aventurados os aflitos": se compararmos esta bem aventurança com a de Lc 6,21, pode-se pensar em todos os pobres que a vida não poupa. Mas pode-se acrescentar que o termo Penthos (aflição) vem de um verbo que só se encontra uma vez em Mt 9,15 “Podem os convidados das bodas chorar enquanto o esposo está com eles?” De fato, os aflitos são os que a ausência, ou o desprezo de Deus entristece profundamente. Jesus também se afligiu vendo a casa de seu Pai tornar-se um centro de comércio e de ladrões; vendo a lei de amor de seu Pai ser usada para pôr fardos pesados sobre os ombros dos simples; vendo essa mesma Torah ser usada contra o homem e não para ele. Em resumo, afligiu-se diante desta desfiguração do rosto do Pai!

“Bem-aventurados os misericordiosos”: no Antigo Testamento a misericórdia é, antes de mais, um atributo de Deus. Sua misericórdia consiste em perdoar as faltas e a agir em favor das pessoas que estão na necessidade. O termo que é traduzido na Bíblia por misericórdia é “rehem” que de fato designa o útero, o seio materno. “Ser misericordioso é “senti-lo no ventre” diante de uma situação de mal ou de miséria (…) Os misericordiosos são aqueles que abrem seus corações aos outros e agem para aliviar seus sofrimentos (…) A partir dos exemplos dados em Mateus 25 pode-se alargar e concluir que a bem-aventurança da misericórdia abraça todos os serviços a prestar ao próximo em situação de necessidade”.

A parábola de Mateus 18,23-35 revela, por seu lado, que “o perdão dado aos outros vem do perdão recebido de Deus (…) A experiência de ser perdoado por Deus leva-nos normalmente a ser capazes de perdoar aos que nos fizeram mal. A acolhida do perdão é real, autêntica, quando aquele que o recebe dá frutos, perdoando por sua vez”5. Como não ouvir aqui o eco das palavras de Jesus na cruz “Pai perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”?

Pode-se aplicar a mesma releitura cristológica a cada uma das outras bem-aventuranças. Isso nos permite ver um pouco da beleza do rosto do “mais belo dentre os filhos dos homens”. E através dele ter um reflexo da beleza do Pai.

 

1. M. Dumais, Le sermon sur la Montagne (Mat 5-7), CE 94 Paris, Cerf, 1995 pág. 18.

2. M. Dumais, Le sermon sur la Montagne (Mat 5-7), CE 94 Paris, Cerf, 1995 pág. 18.

3. M. Dumais, Le Sermon sur la Montagne (Mat 5-7), CE 94, Paris, Cerf, 1995 pág. 18-19.

4. Idem pág 20.

5. Idem pág 23.